sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Mais um quartilho para a mesa do canto

Foto Hernâni Von Doellinger

Durante muito tempo cuidei que se chamavam assim por causa das vacas que ficavam cá fora presas pela soga às argolas da parede, ruminando uma pouca de palha ou erva, enquanto os donos enchiam a mula lá dentro. "Casa de Pasto - Bons Vinhos e Petiscos", dizia a tabuleta, geralmente de madeira, numa letra desenhada às três pancadas e desbotada pelo uso do olhar. Já lá vão tantos anos, mas juro que até hoje ainda não encontrei coisa mais linda de se ler.
Nas décadas de sessenta, setenta e um cheirinho de oitenta do século passado, a vila de Fafe era o céu na terra para os devotos dos comes e bebes. Tascos, tabernas, casas de pasto, pensões e outros arraçados de restaurante, havia-os de vários feitios e para todos os gostos e bolsos, quase porta sim, porta não. O Escondidinho, o Alberto Coveiro, a Silvina Monteiro, na Rua Montenegro, o Sanica, o Marinho, o Guarda-Fios, o Vale D'Estêvão, o Manel Bigodes, da Granja, o Quinzinho e o Tanoeiro, ambos em Santo Ovídio, a Rapa e o Ferrador, os dois na Feira Velha, o Feira Velha, na Rua Visconde Moreira de Rei, o Jaime Biró, da Rua de Baixo, o Toninho da Ponte do Ranha, o Neca do Hotel, o Toninho Pires, o Zeca Batata, o Magalhães da Olímpia e o Matazana, só estes são mais do que as estações de uma via-sacra e havia quem entrasse para molhar a palavra em todos eles. Religiosamente.
Mais ou menos no meu raio de acção, centrado ali no Santo Velho, havia ainda o Peludo, o Zé Manco e o Paredes, mesmo ao pé da porta, o Chupiu, as pataniscas do Miranda, a Quiterinha, ou Texas, a Adega dos Vasinhos e as mãos de ouro da Juditinha, o vinho branco e bacalhau frito (há lá melhor mata-bicho!) no Lameiras da Rua de Baixo, o bolo com sardinhas da Brecha, a Dinâmica, o insubstituível Nacor, o Zé da Menina, que também fazia sandes da famosa vitela, a Esquiça, que ainda faz das tripas coração, a Adega Popular, ou Fernando da Sede, que está aí para as curvas, e o Manel do Campo, onde uma vez o meu querido tio Américo, que me iniciou nestas vidas, me levou a comer um arroz de ervilhas de quebrar com fanecas fritas que estava de se lhe cantar um Te Deum.
O Manel do Campo, propriamente dito, era um homem imenso, o homem mais gordo do mundo, aos meus olhos de miúdo. Mas ia de bicicleta e suspensórios de casa para o trabalho e do trabalho para casa, naquela pedalada lenta e pesada que parece que estás aqui estás a malhar, cantando a plenos pulmões, numa voz grave, o "Marina, Marina, Marina" do Rocco Granata. Quem se lembra, que levante o braço.

Os tascos e casas de pasto de Fafe eram lugares de culto. Instituições de serviço público, monumentos de interesse nacional, património da humanidade. Ali praticava-se a fraternidade. Ali, do doutor ao sapateiro, como então se dizia, com os queixos numa caneca que passa de mão em mão, os homens (e as mulheres, que também as havia) eram todos iguais. Eram irmãos. O coitado que levava a caneca ao fim, mandava vir a próxima...
Nenhum recém-chegado começava a beber sem antes erguer a caneca aos presentes:
- São servidos, meus senhores?
- Estamos no mesmo - respondiam, à volta.
Este cerimonial, creio, ainda se pratica.
O vinho, a qualidade do vinho, era a pedra-de-toque para o sucesso de uma casa. Um sucesso traidor, de ida e volta. Sabia-se que em certo sítio havia pipa nova, de pinga de estalo, e era a invasão. A pipa chegava às últimas e todos lhe viravam costas, mesmo antes de ela exalar o derradeiro suspiro. Os apreciadores procuravam novo poiso, onde a história de amor e traição se repetia.
Era inevitável. Claro que também se apanhavam umas cardinas. E de caixão à cova. Eu não vou dizer nomes, mas podem acreditar no seguinte: por causa das coisas, havia uns bebedores muito conhecidos e prevenidos que, consoante os casos, tinham burro, bicicleta e até motorizada de tal maneira amestrados que podiam ir para casa de olhos fechados. E iam. Os bichos, incluindo os de duas rodas, já sabiam o caminho...

Isto é a minha memória, a memória dos meus. E a minha homenagem sumária e porque sim. Os tascos da minha terra têm uma história e histórias que deviam ser contadas ao detalhe por quem as saiba procurar e contar, com o rigor e a graça que os ilustres nomes dos tasqueiros de antanho justificam e merecem. No meio de tanta treta que se edita, patrocina, apresenta e promove em Fafe, ora cá está um livrinho que até eu era capaz de ler. Enquanto espero, sentado, venha mais um quartilho para a mesa do canto.

É matemático

Antes uma pedra no sapato do que um cálculo renal.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Carolino, sempre!

O Naninho Carolino, que é solteiro militante e uma jóia de moço, é Carolino por causa da avó, que era a Senhora Carolina, casada com o extraordinário Zé de Castro, o nosso poeta cauteleiro, que uma vez mandou a mulher para o hospital com uma sacholada na cabeça. De resto, o Naninho até se chama Hernâni Ferreira Castro e é um dos heróicos resistentes que vão mantendo viva a Associação Desportiva de Fafe, o seu verdadeiro caso de amor. Lembro-me sempre do Naninho (a soprar pelo canto da boca ao peidinho do penteado) quando a problemática é arroz. Carolino ou agulha, eis a questão, e eu não percebo onde é que está a dúvida.
Tomem nota, antes de mais, desta pescadinha de rabo na boca: o arroz carolino é um produto português, nado e criado nos estuários dos rios Sado, Tejo e Mondego, e Portugal é auto-suficiente na produção de arroz carolino. Já o arroz agulha é de origem asiática, quase todo importado. Não vou entrar em contradição com o que já escrevi, não tenho nada contra o que é estrangeiro, sobretudo se for melhor. Mas a verdade é que, se todos comêssemos do nosso arroz, e nós comemos arroz que nem chineses, dávamos um bom empurrão aos produtores nacionais e até podia ser que o preço ao consumidor baixasse.
Mas, patriotismos à parte, o fundamental é que o carolino é o arroz ideal para os pratos tradicionais da cozinha portuguesa. Com uma cozedura a exigir mais acompanhamento, é certo, mas mais cremoso e aveludado na calda final, e absorvendo melhor os condimentos e os paladares dos outros ingredientes, o carolino é a base indispensável para os nossos mais deliciosos arrozes, os malandros: do arroz de polvo ao arroz de tomate, do arroz de marisco ao arroz de bacalhau, do arroz de feijão ao arroz de peixe, do arroz de grelos ao arroz de cabidela, do etc. ao etc.
Quanto ao agulha, é absolutamente recomendado para quem não sabe cozinhar (por exemplo, os novíssimos chefs do arroz de atum, de lata, que lata!) ou, como agora se diz, para quem não tem tempo para estar na cozinha, que é a mesma coisa.
Portanto: carolino, sempre! E um abraço para o Naninho.

P.S. - Recomendo a leitura da versão melhorada deste texto (13 de Setembro de 2023), aqui, no meu blogue Fafismos, dedicado particularmente a Fafe.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Portugal

Sem dias de Governo.

O meu cão

Eu tenho um cão imaginário. Chama-se Parkinson, porque quando quero chamar por ele nunca me lembro do nome Alzheimer. A raça do meu cão tem dias, vantagem de ser imaginário: às segundas é perdigueiro, às terças é labrador, às quartas é são bernardo, às quintas é pastor alemão, às sextas é dálmata e aos fins-de-semana é sobretudo rafeiro. O meu cão nasceu no país certo.
O meu cão fica-me muito em conta. Não come mas cala, dispensa vacinas e vitaminas, nunca vai ao veterinário, não precisa de casota nem de agasalhos para o inverno, e só me custa o preço da trela. O meu cão conhece o dono e não morde a mão que não o alimenta. Se todos fôssemos cães assim, vínhamos mesmo a calhar ao Governo da Nação.
O meu cão faz-se muito bem de morto e corre atrás de qualquer merda que lhe atire. Só lhe falta falar. O meu cão não ladra às pernas das pessoas, não abocanha, não caga no passeio, não mija nos pneus do carro do vizinho, não tem pulgas nem chatos, nem anda por aí a emprenhar cadelas mais ou menos oferecidas. É como se não existisse. O meu cão é um exemplo de cidadão.
Já mo quiseram comprar e eu não o vendi. Foi um vendedor de empregos imaginários. Oferecia-me dois empregos em troca do meu cão. Nã! Antes quero o cão.

Profundo 16

Água vai! Mas vinho ainda vai melhor.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O retrato de Salazar

Também tive a sorte de conhecer a D. Laura Summavielle mãe (1879-1971), uma mulher extraordinária que viveu uma vida muito à frente do seu tempo. Tal como eu a via do alto dos meus oito, nove anos, a matriarca da ínclita geração dos Summavielles era então uma velhinha toda guicha, franzina e pândega. No tempo da ditadura fascista, a senhora tinha uma curiosa brincadeira, que apelava à interacção de Fafe inteiro que lhe passasse por baixo da comprida sacada da casa da família, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, mesmo em frente ao Cinema. Fosse quem fosse. Eu também não escapei à partida, mais do que uma vez, e com muito gosto.
Comigo era assim: mal me via aproximar, a marota da D. Laura, de lá de cima, dizia num falsete altivo mas educado:
- Ó menino, apanhe-me aí, por favor, esse retrato do Dr. António de Oliveira Salazar, que eu deixei cair...
E eu lá apanhava. E era o quê? Era mesmo a fotografia do ditador? Não. Era uma carta de jogar, saída de uns baralhos que havia naquela altura e que não sei se ainda existem. Exactamente: afinal, o retrato de Salazar era uma carta. Mas não cuidem que era uma carta qualquer, um duque, uma sena ou, mesmo, um valete. Nem era o rei. Nem o ás. O retrato de Salazar era... o burro.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O meu cinema paraíso

Foto Hernâni Von Doellinger

Parece o reclame de um salão de cabeleiro unissexo. "Sansão & Dalila". Desinteresso-me primeiro, mas ele está ali mesmo à minha frente, colado na carruagem do metro, e de repente começa a exercer sobre mim um fascínio inesperado e misterioso. Olho melhor, a ver se percebo o que se passa comigo. Ah!, afinal é a ópera de Camille Saint-Saëns, que vai à cena no Coliseu do Porto. É "Sansão e Dalila". O e não é comercial, é apenas truque gráfico, modernice. Pronto, está tudo esclarecido...
Mas não estava! O anúncio continuava a chamar por mim. Que raio de poder hipnótico poderia ter aquele pedaço de papel plastificado? As palavras mágicas não paravam de ecoar na minha cabeça, "Sansão e Dalila", "Sansão e Dalila", "Sansão e Dalila"! Resolvi-me, levantei-me do meu lugar, dei dois passos em frente, tirei os óculos, semicerrei os olhos e tentei espreitar para dentro do reclame. O metro apitou, uma, duas, três vezes, e o reclame abriu-se num clarão como se fosse o meu espelho de Alice, puxando-me pelos colarinhos e levando-me aos confins do meu passado, numa viagem instantânea até ao tempo em que

eu era um miúdo. Éramos todos uns miúdos. E íamos em bando até à porta da D. Laura Summavielle, filha, que morava à beira da Igreja Nova. Os Summavielles (Sumaviéis, na versão fafense) eram os donos do Teatro-Cinema de Fafe, do Cinema. E nós íamos pedir à D. Laura, que devia ser o melhor coração da família e para mim era o melhor coração do mundo, que nos levasse a ver o filme de graça. E a boa senhora levava.
A coisa tinha o seu ritual. Esperar à porta do cinema não valia, tínhamos que ir mesmo a casa da D. Laura, que também não era longe. Éramos para aí uns seis ou sete, às vezes menos, consoante o lado para que tinham acordado os pais de cada qual, e devíamos lá chegar pelo menos com uma boa meia hora de avanço em relação à hora de saída prevista da senhora. Chegávamos e esperávamos. Não se batia à porta, não se tocava na campainha, esperávamos apenas, calados como ratos, porque o mais pequeno ruído podia deitar tudo a perder.
A senhora saía, encarava-nos sempre com um grande sorriso e nós continuávamos sem dizer nada, nem era preciso. Púnhamo-nos atrás dela, em fila, como pintainhos seguindo a mãe galinha, e, agora que penso nisto, acho que devia ter sido uma coisa bonita de se ver, aquele extraordinário grupo a atravessar o Largo da Igreja e a descer até ao Cinema, na máxima compostura e no mais religioso silêncio.
A D. Laura entrava e nós ficávamos cá fora, bem guardados pelo Sr. Leitão porteiro, que era mau como as cobras e vestia um capote castanho, com botões dourados e gola vermelha, que até parecia um general soviético, embora na bilheteira é que estivesse o Sr. Castro, comunista, alfaiate e bom amigo.
Perdíamos os desenhos animados, perdíamos os "documentários", mas na horinha do arranque do filme a sério vinha a ordem da D. Laura e imediatamente desatávamos a correr Cinema acima, dois andares a bater chancas em chão de soalho com escarradores, numa trovoada que quase deitava a casa abaixo, até chegarmos ao nosso sítio. Só ali voltávamos a portar-nos bem, sempre perante o olhar bondoso e compreensivo da nossa benfeitora, que, do seu camarote ao lado da cabina de projecção do Sr. Reinaldo Pires, nos lançava mais um sorriso, com o dedo de chiu sobre os lábios finos.
O nosso sítio era uma frisa e cheirava a veludo velho e tabaco. Quase que pertencíamos ao filme! O som dos altifalantes entrava-nos pelo corpo dentro, estremecia-nos, eu era do tamanho dum buraco do nariz do Maciste e tinha que me afastar para não ser sugado. Foi ali que eu conheci pessoalmente o Ursus, o Spartacus, o Ben-Hur e o Hércules e podem crer que aqueles cenários de papelão só pareciam de papelão. Eu sei, porque estive nos filmes. Fui eu que ajudei o Sansão a dizer "morra Sansão e todos os que aqui estão", para eu e ele nos vingarmos da traidora da Dalila e acabarmos com o filme logo ali, porque aquilo não se faz, e não me venham dizer que ele não disse nada disto.
Perguntassem ao "Sandim". Ele é que ia à estação de comboios "buscar os artistas", num carrinho com rodas de madeira. Mas não trazia os beijos todos. Não cabiam nas bobinas, decerto. As cópias dos filmes eram velhas, cheias de cortes, no melhor e mais quentinho passavam sempre à frente. Como o Jornal da Igreja Nova trazia uma sinopse das películas do fim-de-semana, nós achávamos que o Sr. Arcipreste fazia um visionamento prévio e culpávamo-lo por aquele imperdoável acto de censura. Mal eu sabia que ainda havia de ser feito um filme sobre esta história, mas em italiano.
No meu Cinema, no tempo em que o que eu queria era crescer para ver filmes "para maiores de 17", havia também umas senhoras da Rua de Baixo e de Santo Ovídio que faziam de arrumadoras e tomavam conta do buffet, onde serviam gasosas, laranjadas, café de cafeteira e rebuçados mulatos. Ao intervalo, enquanto o ardina entrava plateia dentro com a edição do Norte Desportivo de domingo à noite, já com os resultados e relatos dos jogos todos, os espectadores recebiam umas senhas para irem lá fora tomar café em condições.
No meu Cinema liam-se as legendas em voz alta para os analfabetos. O respeito e a, como hoje se diria, segurança eram zelados pelo Senhor Barroco, pelos Sr. José e Sr. António do Santo e pelo Sr. António Quim, que eu sempre confundi com o outro, o de "Zorba, o Grego". Foi na companhia desta gente que eu cresci. Mal comecei a ganhar, passei a ter bilhete reservado para todas as sessões e, depois do 25 de Abril, até vi o "Último Tango em Paris". Duas vezes.

Deixei Fafe no início da década de 1980 e o meu Cinema entrou em ruína. Pensei que outros tivessem ficado a tomar conta, mas enganei-me. Depois de 25 anos de inactividade, muita politiquice e um impressionante trabalho de recuperação, o Teatro-Cinema de Fafe reabriu portas em 2009, sem Maciste, sem Sansão nem Dalila, sem o Sr. José do Santo e sem a D. Laura Summavielle. Já lá não estão, já cá não estão. O novo Teatro-Cinema de Fafe, que só conheço por fora, funciona agora como entreposto cultural camarário. O que é certamente aplaudível e tem muito mais cagança, mas não é a mesma coisa.

domingo, 25 de setembro de 2011

O ponto do cardeal

José da Cruz Policarpo, cardeal patriarca de Lisboa, deu hoje uma manchete de todo o tamanho ao Jornal de Notícias: "Ninguém sai da política de mãos limpas". Três linhas imensas e definitivas, tão definitivas e tão imensas que só deixaram mais lugar para o futebol.
Não li a entrevista. Tenho José Policarpo como um homem sério. Sei que não é ele o responsável pelo astucioso descontexto-contexto do título do JN. Mas também sei que Policarpo é um cardeal e não um anjo, um anjinho que se deixe levar a dizer o que não quer aos jornalistas. Ele sabe muito bem o que diz e que efeitos pretende provocar. E aqui é que bate o ponto.
Consciente, sábio e justo como é, tenho a certeza absoluta de que José da Cruz Policarpo, cardeal patriarca de Lisboa, fez igualmente questão de realçar, nas suas declarações ao diário nortenho, que na Igreja também anda muita gente de mãos sujas.

PDI

Eu já andava a desconfiar. Pêlos a nascerem nas orelhas, as sobrancelhas, parecem tolas, a cresceram como bigodes e a exigirem até intervenção barbeiral, inesperados e repetidos encontros com amigos nas salas de espera de consultórios médicos, a conta da farmácia a crescer de mês para mês... Hum!, havia aqui qualquer coisa de novo na minha vida, mas eu não tinha bem a certeza do que era.
Na sexta-feira fui almoçar com quatro camaradas. Quando dei fé, já levava eu mais de dez minutos a chagar-lhes a cabeça com a história de uns problemas de saúde muito graves que estive quase para ter mas que por acaso não tive. Eu a falar de doenças. E à mesa. Ainda por cima, a falar de putativas doenças. Eu, que nunca passei cartão a maleita que me aparecesse. Eu, que sou (era?) a ovelha negra de uma família de hipocondríacos. Há realmente algo de novo comigo. E já sei o que é: estou velho.

sábado, 24 de setembro de 2011

Nunca pior

- Então, está tudo?...
- Vamos andando...
- Mas está tudo?...
- Nunca pior...
- Isso é que interessa.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Ironia nupcial

Foto Hernâni Von Doellinger

Dramática alteração na correlação de forças em presença no Parque da Cidade, do Porto. O mirante dos espreitas, de que aqui já dei nota, estava ontem ocupado por um casal de noivos em sessão fotográfica pré-nupcial. Ironia do caraças: o sítio habitualmente ocupado pelos badalhocos da mironagem fora tomado de assalto por duas das suas potenciais vítimas, com a ajuda de uma dupla de pacientes profissionais do só-mais-uma-é-a-última-um-sorrisinho-por-favor. Aos viciosos de algibeira não terá restado eventualmente outra saída senão dispersarem, para mais tarde reagruparem. Mas esta parte eu já não vi.
Os espreitas, de binóculos e tudo, eram donos e senhores do miradouro mais alto e mais abrangente do Parque da Cidade. Era dali de cima, com a cumplicidade e às vezes a companhia do pessoal de serviço, que eles se babavam à procura de casalinhos mal escondidos no truca-truca. Foi isto o que eu contei.
Mas a coisa começou a mudar de figura mais ou menos na maré em que eu escrevi "Os espreitas do Parque", no passado dia 1 de Agosto. Longe de mim, no entanto, presumir que os mirones foram expulsos do seu paraíso e a pouca vergonha acabou por causa da denúncia deste farol da moral e dos bons costume que é o Tarrenego!, longe de mim. Primeiro, porque a pouca vergonha não acabou, apenas intervalou, depois de uns dias de abstinência mironal absoluta, mera coincidência. Depois, porque agora há quase sempre quem chegue lá primeiro e tome conta do miradouro. E quem são eles, os novos senhores do Parque? Jovens pares de namorados que se marmelam como gente grande e querem lá saber de quem olha, ou então uma rapaziada toda simpática e bem disposta que fuma ali umas coisas que só lhes dá para rir. Antes assim.

Profundo 14

Isto só lá vai à lombada. É dos livros.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A honra dos Silvas

Um parente que eu não sei se tenho a prazer de conhecer comentou o meu texto anterior afirmando o seu "orgulho em ser um VON DOELLINGER", o que só lhe fica bem. Teria sido bonito que alguém tivesse também saído a terreiro em defesa da honra dos Silvas. Exactamente: alguém de velha têmpera e honra antiga que ousasse chegar-se à frente para gritar alto e bom som, de estandarte em punho e peito inflado de altivez:
- Eu tenho muito orgulho em ser um SILVA, há algum problema?!...
Os Silvas, é preciso que se note, não são uma merda qualquer, e não estou sequer a falar do ilustre casal de inquilinos do Palácio de Belém, que faz aqui tanta falta como o queijo gruyère numa caldeirada de enguias. A primeira linhagem de Silvas é de príncipes e anterior à fundação da nacionalidade portuguesa. Os Silvas de pé-rapado conquistaram Portugal e os Brasis, é só ir ver as listas telefónicas. Os Silvas são uns grandes pinantes, é só ir ver os registos dos motéis, mas aqui são nomes falsos. Os Silvas, se um dia se chateiam, o País pára, porque os Silvas são o País. Chamar ó Silva! num autocarro articulado da STCP é um perigo: os 145 passageiros (48 sentados, 96 de pé e um numa cadeira de rodas) olham todos para trás e o motorista também. O Silva dos Plásticos era mais conhecido do que o Papa. Silva I seria um bom nome para um Papa português.
Embora ninguém escolha ser Silva, nem ser nome nenhum, está visto que os Silvas só têm motivos de orgulho. E quem diz os Silvas, diz os Santos, os Ferreiras, os Pereiras, os Rodrigues, os Costas, os Oliveiras, os Martins, os Sousas, os Gonçalves, os Almeidas, os Carvalhos, os Farias, os Magalhães, os Alves, os Teixeiras, os Lopes, os Ribeiros, os Castelos e até os Brochados. Sim, porque não os Brochados? Há algum problema?

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A desimportância de me chamar Hernâni Von Doellinger

É uma chatice ter um nome assim como o meu, tão aparentemente distintivo, e afinal não ser caso único. Já não me bastava a complicação de passar a vida a repetir vezes sem conta o meu sobrenome ao telefone, sem que ninguém me perceba, acabando depois por dizer que me chamo Hernâni Silva, e fica o assunto resolvido, agora há dois Hernâni Von Doellinger (meus parentes certamente, mas que eu não conheço) nessa treta que é o Facebook, e um deles figura também no catálogo de um site de encontros. Juro que não sou eu. Não aderi ao Facebook, sou contra. E não procuro parceira, estou servido. Eu sou o outro Hernâni Von Doellinger. Ou Silva, se der mais jeito.

(Ler mais em A honra dos Silvas)

Ainda as moelas de coelho

Claro que os coelhos não têm moelas. Claro que não há moelas de coelho. Devo informar, no entanto, que há um sítio em Fafe onde as arranjam muito bem.

P.S. - Tudo sobre moelas de coelho, aqui.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O outro serviço secreto

O SIEV (Sistema de Identificação Electrónica de Veículos) é o segredo mais bem guardado do Estado português. Não se sabe para que serve, embora se suspeite que não serve para nada. Não se sabe o que faz, embora seja quase certo que não faz nada. Se faz alguma coisa, é de morto. Faz com que não se dê por ele. Faz que não existe. E foi assim, usando esta eficaz técnica de camuflagem, que o SIEV se safou da extinção que o Governo acaba de decretar para umas dezenas de organismos e institutos igualmente públicos e notoriamente inúteis.
O SIEV foi criado em 18 de Maio de 2009, no reinado de José Sócrates. O Ministério da Obras Públicas, Transportes e Comunicações atribuiu-lhe "o exclusivo de exploração e gestão do sistema de identificação de veículos" para pagamento de portagens. Mas isto é só fachada. Já em Junho de 2010, nas vésperas de começarmos a ser obrigados a pagar as auto-estradas gratuitas, o semanário Expresso se referia ao SIEV, em título, como "a empresa fantasma que gere as portagens". "A sociedade pública criada em Maio do ano passado pelo Governo para autorizar, gerir e fiscalizar todo o sistema de chips de matrículas e de portagens nas SCUT é uma pequena sala vazia no Paço do Lumiar", escrevia então o jornalista Micael Pereira.
E pouco deve ter mudado desde então. O site do SIEV, tal como naquela altura, continua "sem um número de telefone para onde se possa ligar" ou sem nomes de directores a quem nos possamos dirigir. É um serviço secreto. Há apenas uma "morada provisória" e um endereço de e-mail que, como se verá a seguir, também não serve para nada.

Há quase meio ano que me dirijo ao SIEV, por e-mail, solicitando uma simples informação. Tão simples, que a resposta até pode ser resumida a um sim ou a um não. Fiz o primeiro contacto no dia 5 de Abril de 2011 e procedi ao reenvio da minha missiva a 14 de Abril, 5 de Maio, 2 de Junho, 5 de Julho, 22 de Julho, 1 de Agosto, 7 de Agosto, 16 de Agosto, 22 de Agosto, 29 de Agosto, 5 de Setembro, 12 de Setembro e hoje. Sim, há dois meses que contacto o SIEV todas as segundas-feiras. Contacto, é uma forma de dizer, porque fico sempre a falar sozinho. O fantasma do SIEV não se digna sequer acusar a recepção dos meus e-mails ou mandar-me bater a outra porta.
Eu e o SIEV estamos, portanto, praticamente a festejar o nosso primeiro meio aniversário. Se vou desistir? Não! Se este é o texto da minha capitulação? Não! De hoje a oito há mais.

domingo, 18 de setembro de 2011

SOS coelhos

Atenção, muita atenção! Os coelhos do Parque da Cidade estão a desaparecer a olhos vistos. Ora bem: eu também sou frequentador, também tenho direito, portanto gostava de saber onde é que são as tainadas.

sábado, 17 de setembro de 2011

Em balão previamente aquecido


Aviso: o que se segue é um texto de merda.

Moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado na varanda. E é na varanda que, depois de um jantar mais coisa e tal como o de ontem, eu gosto de fumar a minha cachimbada e beber um fundinho de CRF em balão previamente aquecido. "Em balão previamente aquecido". Não sei quem foi o génio que inventou a frase e o conceito, mas, já repararam?, sabe quase tão bem dizê-lo como bebê-lo.
E balão, para mim, é mesmo balão. Não um balãozinho ou um balo. É balão, bojudo e de boca larga, tipo Alberto João Jardim. O conteúdo até poderá ser pouco, e é, um dedo apenas e medido pela minha mulher, mas o continente quero-o pela medida grande.
Moro em frente ao mar, dizia eu, e tenho uma vizinha que dá de comer às gaivotas. A sério, dá de comer aos gatos e às gaivotas. E as gaivotas, que vêm ao cheiro, não me largam a varanda. De dia e de noite. Todos os dias e todas as noites. Creio que ainda ninguém explicou a estas gajas que só me deveriam bater à porta em caso de tempestade marítima.
Ora, a gaivota é um bicho que, como a maioria dos portugueses, come qualquer merda e anda quase sempre de soltura. Resultado: quando abre a cloaca, e aquilo é um porto franco, só de saída, chovem cagadas de alto lá com elas. Quem tinha capacete, tinha; quem não tinha, que tivesse. Isto é ciência.
Portanto, moro praticamente em frente ao mar e estava na varanda à conversa com o CRF em balão previamente aquecido, deitando um olho, de quando em vez, ao Gil Vicente-Olhanense, e isto é que eu ainda não tinha dito. Foi num desses momentos, no exacto momento em que eu disponibilizei o meu olho esquerdo para mais um fora-de-jogo mal assinalado, ainda por cima, que a puta da gaivota do costume - já te conheço a fronha, ó cagona - resolveu aliviar lastro, com uma pontaria tamanha que me acertou em cheio no indefeso balão de boca larga.
Antes de ficar realmente fodido, pensei: isto é uma metáfora do pobre país que somos, todos nos cagam em cima, até as gaivotas, e pela boca morre o peixe. Bebi um golo e não era metáfora nenhuma, era mesmo merda. Para a próxima vou beber o CRF num balãozinho, de boquinha apertadinha. Com menos merda, e previamente aquecido, não há-de saber tão mal.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

No armário

Cá em casa, quem veste a saia sou eu. E a minha mulher perguntou-me:
- O sal refinado onde é que está, no armário ou na despensa?
E eu, da cozinha:
- O refinado? No armário, é claro.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Jornais

Fantástica a vitória do Benfica, por 1-1, sobre o Manchester United. O empate do FC Porto, 2-1, perante o Shakhtar Donetsk, também não foi nada mau.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

domingo, 11 de setembro de 2011

11 de Setembro de 2011

Dia de reflexão sobre o mundo e o futuro do mundo, a segurança e o terrorismo, a América e outros radicalismos? Não.
Jornada de luta contra o desemprego e de protesto contra as medidas asfixiantes de um Governo incompetente e desorientado que a única coisa que sabe fazer para "tirar o País da crise" é aumentar os impostos em cima das vítimas do costume? Não.
Não. Hoje vamos falar de penáltis.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Sei de sítios

Sou devoto dos prazeres da mesa. Gosto da liturgia de uma boa refeição, em família ou com amigos, gosto de comer, gosto do que é bom, e sei o que é bom. Também sei fazer. Sou um apaixonado pela boa e honesta cozinha portuguesa. Gosto da cozinha portuguesa tal qual ela é, na sua pureza original: tradicional, apurada, robusta, variada, generosa. Um bom prato, uma especialidade daquelas de trás da orelha, é capaz de me fazer andar duzentos ou trezentos quilómetros pelo prazer de o degustar. Sei de sítios que não conto a ninguém, nem sob tortura, e se a tortura não for a da fome.
Enquanto posso (e posso cada vez menos, como a maioria dos portugueses), vou a esses sítios onde já há muito eu e a minha mulher somos tratados como amigos, e com mimos especiais, mas tenho que admitir que é sobretudo a comida que lá me leva. Vou pelo gosto, é este o meu parâmetro de aferição e escolha fundamental.
Mas respeito quem se deixa seduzir por outras variáveis gastronómicas ou paragastronómicas, como, por exemplo, essa coisa tão vaga ou talvez não como é "o serviço" ou "o atendimento".
Um velho compincha doutras vidas mas também da santa trincadeira - nas imortais palavras de mestre Aquilino Ribeiro, colocadas na boca de um abade, pois claro - contou-me que estava um destes dias numa bela jantarada, num grupo de gente boa e interessante, quando um dos convivas alvitrou um próximo repasto a realizar em determinado restaurante, que "tem um excelente serviço"...
O meu amigo, que é danado para a brincadeira mas o outro não sabia, perguntou, com matreirice:
- Excelente serviço, pois... Mas o que é que se come? O que é que é lá muito bom?
- Quer-se dizer, não sei, tem muita coisa, nada assim de especial, mas o atendimento é óptimo... - colocou-se à defesa o homem da ideia.
- Está bem, mas eu não como serviço, o atendimento não me enche a barriga - insistiu o meu amigo e voltou a insistir, perante o cada vez maior embaraço de quem já se tinha arrependido de ter dado apenas uma sugestão e do resto do pessoal à volta da mesa.
Tudo acabou depois na risota, quando todos perceberam que o meu amigo afinal estava na tanga, e até tiveram sorte porque desta vez, tenho a certeza, ele não arrumou a questão com uma expressão que lhe é muito cara e que, neste contexto, seria algo do género:
- O serviço? Dá-me com o serviço nos

tomates aux gésiers de lapin. Livre de gorduras e lave em duas águas, uma pode ser das Pedras, as moelas de coelho. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto o ministro da Finanças conta até dez, que é aproximadamente durante duas horas e um quarto. Os ovos de codorniz deviam ter sido tirados antes, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Aqueça a feijoada que sobrou de ontem e regale-se como deve ser.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O bitaite de Cavaco

Foi apenas um momento, o tempo de nos cruzarmos, mas deu para perceber que a conversa ia animada. De mão dada com a mãe, o miúdo, de seis ou sete anos quando muito, perguntou, cheio de certeza na resposta: Ó mãe, a Espanha já deve ter sido de Portugal, porque D. Afonso Henriques ganhou a Espanha, não é? Já não ouvi o que lhe disse a mãe, mas deve-lhe ter dito que não, que não é bem assim. Fiquei a desejar, no entanto, que o tenha feito com o cuidado de não ferir o enorme orgulho daquele pequeno português. Há desgostos, nesta idade, que são irreparáveis para toda a vida. A verdade sobre o nosso primeiro rei, sobre o Pai Natal ou outras barbas que tais pode muito bem esperar, que não arrefece.
E fiquei também a pensar na história deste pequeno rectângulo à beira-mar prantado. Não tanto nas nossas conquistas, e foram muitas e valerosas, mas naqueles que nos ganharam, para usar a ingénua mas certeira terminologia da criança. Os romanos, os visigodos e os suevos, os mouros, os espanhóis, pois claro, os tenreiros, os mellos e os champalimauds, os americanos, os amorins, os azevedos, de novo os suevos e os visigodos, povos, uns mais bárbaros do que outros, que invadiram e dominaram Portugal e os portugueses a seu bel-prazer em épocas distintas ao longo dos tempos. E alguns ainda estão por cá.
O miúdo deixou-me a pensar no patriotismo, no lado bom e no lado mau desse conceito tão pau para toda a colher. Deixou-me a pensar no dia da raça, obrigou-me a pensar no Presidente da República, Cavaco Silva, que ontem criticou o excesso de jogadores de futebol estrangeiros em Portugal.
É, em França preocupa-os que sejam pretos, em Portugal somos mais suaves: são os estrangeiros, assim chamados, que estão em demasia. Embora não pareça, temos um Presidente todo modernaço. Um Presidente que comunica ao País via Twiter e que até já larga o seu bitaite sobre futebol.
Confesso que o excesso de jogadores estrangeiros é assunto que não me tira o sono. Mas eu não sou Presidente da República. Suspeito, todavia, que, se eu fosse Presidente da República, nos tempos que correm, teria muito mais com que me preocupar e muito mais em que gastar as preciosas palavras presidenciais.
Não. Não me incomodam os estrangeiros no futebol português. É preciso é que eles sejam bons. Como não me incomodaria ter um primeiro-ministro sueco, um líder da oposição guatemalteco e um Presidente da República burquinês. Era preciso era que eles fossem honestos, sensatos, competentes e (já que pedir não custa) com um cantinho de bondade no coração. Não estaríamos melhor servidos?

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Concurso de pirilaus

Diz o Diário de Notícias:
"Diário de Notícias é o jornal que mais cresce".
Diz o Jornal de Notícias:
"JN com maior subida até Junho".
O JN e o DN pertencem, ambos, ao grupo Controlinveste, de Joaquim Oliveira.

Um cão que percebe alemão

Estou varado. Um cão que percebe alemão! Palavra de honra, vi no Parque da Cidade um cão que percebe alemão. Coisa absolutamente extraordinária. O normal, o que é segundo a natureza, é que os cães percebam português, como toda a gente sabe e Deus quer. Bobi, senta! Tejo, vai lá para fora! Ou, condescendamos, Aramis, anda já aqui à dona! E os bichinhos compreendem e acatam. Sentam, vão ou vêm. Foi sempre assim com todos os animais desde Adão e Eva e nem podia ser de outra forma após Noé. Foi assim no Presépio e foi assim na embaixada de D. Manuel ao Papa. Agora, em alemão é que eu não fazia ideia. Parece impossível...
Eu vou contar: era um casal claramente germânico que iniciava a sua caminhada matinal pelo parque. À frente, livre da trela, saltitava um daqueles luluzinhos fraldiqueiros muito pouco germânicos e que se afastava dos donos cada vez mais, à procura da brincadeira com os melros. E afastou-se tanto que a senhora se sobressaltou, pôs-se de repente em sentido, puxou pelos galões, levantou e estendeu o braço direito (apontando ao animal, quero eu dizer) e disse qualquer coisa parecida com Mainazuçavelpencomanihaihaihaihacomanumume e que eu suponho que seja o nome de baptismo do bicho, uma vez que ele deu si, fez imediatamente meia volta e, de rabo entre as pernas, foi entregar-se aos braços abertos da dona. O palavrão também pode querer significar outra coisa qualquer, mas não sei dizer o quê, porque, neste como noutros departamentos, estou ainda abaixo de cão.
O que sei dizer é que fiquei para a minha vida. Um cão que percebe alemão? Depois do que vi, já estou por tudo, acredito em tudo. Se me chamarem para ir jogar no Saragoça, eu acredito-me e vou. Se me disserem que a crise começa a acabar já para o ano, eu fio-me e corro a fazer o empréstimo para o Ferrari. Se me garantirem que o Miguel Relvas, não desfazendo, é muito boa pessoa, eu... eu... ... Não sei, se calhar não acredito.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O topo da hora

Ora cá está mais uma interessantíssima problemática. A problemática do "topo da hora", esse escusado e equívoco bordão radiofónico que hoje me proponho dissecar com a seriedade intelectual e a profundidade filosófica do costume.
Na rádio, o "topo da hora" é o sítio onde estão colocados os noticiários. Os noticiários alargados, entenda-se, porque também há as edições apertadinhas, às meias... doses. "Notícias no topo da hora", costumam dizer-nos os locutores ou jornalistas, remetendo-nos, por exemplo, para as 11 horas, para o noticiário das 11 horas. E aqui é que bate o ponto. Porque (sigam o meu raciocínio, por favor), se o noticiário das 11 horas for no "topo da hora", ele deverá ir para o ar às 11h59m59s, porque aí é que é o topo da hora. Isto é: para estarem no "topo da hora", as notícias das 11 só são ao meio-dia; porque, na verdade, as 11 são o topo da hora, mas das 10. O que quer dizer que temos andado estes anos todos com os noticiários trocados.
Que não restem dúvidas: topo, neste contexto, quer dizer a parte mais elevada, o cume. E o cume de uma hora é o último segundo antes de ela entrar na hora seguinte. É certo que topo também pode significar extremidade, mas, se forem por aí, recomenda-se aos senhores locutores e jornalistas que apontem sempre as notícias para o topo de baixo.

domingo, 4 de setembro de 2011

Gostava que eles fossem à merda

Fui muitas vezes à merda. E gostava. A minha avó Emília mandava-me, com uma telha, à procura de poios de bosta, que depois servia para selar o forno onde ela cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo para que tivéssemos pão à mesa. Isso e, às vezes, ir à fonte buscar água.
A minha avó Emília, que era pequenina e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naquele tempo, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Na casa da minha avó Emília, que era a do avô Bernardino, também era assim. Podia faltar tudo, e às vezes faltava, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "americano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhh!
Eram tempos de penúria. Como os de hoje. Passaram mais de 40 anos e eu gostava que isto estivesse melhor, palavra de honra. Gostava que tivéssemos um governo que não se esquecesse que o País tem pessoas dentro. Gostava que Pedro Passos Coelho e Paulo Portas percebessem que não se pode salvar o País desmantelando a sociedade. Gostava que Vítor Gaspar chegasse rapidamente à conclusão de que o País não é uma equação abstracta, é uma realidade concreta. Gostava que o Passos, o Portas e o Gaspar entendessem que Portugal só tem futuro se continuar a haver portugueses. Gostava que o Passos, o Portas e o Gaspar parassem de tirar o pão da boca dos mais desfavorecidos. Gostava que eles fizessem exactamente o contrário, que contribuíssem com alguma coisinha para a mesa dos pobres. Enfim, gostava que eles fossem à merda.

sábado, 3 de setembro de 2011

Neques

Neques era o meu avô de Basto, o meu avô Bernardino, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria. Já não há bernardinos assim. E tenho saudades.

(Mais sobe o meu avô Bernardino, aqui)

Estes ex são uns chatos!

Manuela Ferreira Leite, ex-ministra das Finanças e ex-líder do PSD, ataca a política fiscal do Governo. Diz que "de justiça tem pouco e de eficácia tem nada" e que "já se ultrapassou o limite do possível".
Marques Mendes, ex-líder do PSD, afirma que o novo aumento de impostos anunciado pelo Governo (o terceiro em três meses) "não foi bem explicado" e acusa o Executivo de Passos Coelho de não estar a cumprir com as promessas eleitorais.
Vasco Graça Moura, ex-eurodeputado social-democrata, declara que o "aumento de impostos está a traduzir-se num incomportável sacrifício das classes médias".
Mário Soares, ex-Presidente da República e admirador confesso de Passos Coelho, mostra-se "preocupado" com as medidas de austeridade aplicadas pelo Governo PSD/CDS, admitindo que Portugal está "a caminhar valentemente para o limite" do que a classe média pode suportar de impostos.
Estes ex são uns chatos! Ainda por cima, têm razão.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Os apaixonantes

Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite a aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, por respeito. Trazem na carteira o calendário dos concertos. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor! O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser vistos este fim-de-semana numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha. Se por caso os vir, respeite-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. No dia em que desaparecer o último apaixonante, as filarmónicas também não ficam cá por muito mais tempo.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Assaltos na A28

Continua a onda de assaltos na A28. A Via Livre, empresa concessionária desta ex-scut nortenha, não consegue ter mão num sistema de controlo de portagens meio marado e tendencialmente rapinante que, silenciosamente, sem dizer sequer "mãos ao ar!", ataca os automobilistas mais incautos, sacando-lhes à traição dois euros aqui, três ou quatro mais à frente, numa sanha extorsionária que parece não ter fim.
Sim, falo de cobranças indevidas. E, sim, falo daqueles condutores que se fiam num sistema de controlo de portagens parido a bordo da nave do "2001: Odisseia no Espaço", um sistema que parece funcionar em roda-livre e que, portanto, não é de confiança, antes pelo contrário. E falo assim porque, pelo menos para já, não tenho razões para desconfiar que por detrás de tudo isto haja má-fé da concessionária. Boa-fé é a dos utentes, que acreditam no que não devem, não conferem as cobranças, não se apercebem dos abusos e não reclamam. Não reclamam, não há devolução. E está consumado o assalto.
As principais vítimas são os automobilistas aderentes ao sistema de isenções e descontos inventado à pressão pelo Governo de Sócrates para calar o povo e que, até Junho do próximo ano, dá direito a uma borla de dez viagens mensais em cada ex-scut. Sendo que, segundo as doutas palavras da própria Via Livre, "uma viagem resulta da agregação dos trânsitos (passagem de um veículo por um ou vários pórticos) realizados por um mesmo veículo, numa determinada via e no mesmo sentido de marcha". Isto é, só para dar um exemplo: ir do Porto a Viana do Castelo, ou vice-versa, conta apenas como uma viagem.
Como é que funciona então o esquema, esta espécie de portajacking? Em vez de "agregar os trânsitos" e marcar só a entrada e a saída da auto-estrada, o maluco do sistema, quando lhe dá na cabeça, resolve assinalar também a passagem por um ou mais pórticos intermédios, transformando artificialmente uma única e ininterrupta viagem em duas ou três... ou quatro. Resultado: quem fez apenas dez viagens numa mesma ex-scut durante um mês, todas gratuitas exactamente até à décima, passa a ter contabilizadas onze, doze... ou treze viagens. E já lhe foram ao bolso! Por uma, duas... ou três vezes.
Acha que exagero? Se também por lá anda, comece a olhar com olhos de ver para os extractos e registos de cobrança das suas passagens na A28 e depois diga-me alguma coisa.