segunda-feira, 15 de abril de 2013

Fernando Namora

Talvez o amanhecer ainda viesse longe. Mas não queria certificar-se pelo relógio. Ia esperar o novo dia junto da árvore a que se encostara horas antes (havia quanto tempo?), esperá-lo como a um acontecimento solene e infalível, mas do qual não se prevê de que lado surge nem a hora da chegada. No entanto, por cima do perfil desmantelado das casas, esboçava-se já uma levíssima claridade. Podia ser o alvorecer na sua silente caminhada ou qualquer outra coisa mais decisiva ainda. Ele queria imaginar que fosse outra coisa. O que viesse, porém, assim tão subtil e inevitável, vinha para purificá-lo. Vinha para decidi-lo.
Já não era noite, e ainda não era o amanhecer; nessa transição esvaziada a única coisa real e definitiva era a árvore. A árvore, as raízes. Tudo o mais pertencia a um espaço sem limites e distorcido, com a avenida, a cidade e as casas alongadas, feitas de uma pasta mole, esticada de um e outro lado por dedos oblongos; era um espaço sem espessura e sem contornos.

"O Homem Disfarçado", Fernando Namora

(Fernando Namora nasceu no dia 15 de Abril de 1919. Morreu em 1989.)

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