terça-feira, 1 de julho de 2014

É assim que eu gosto da minha rua

                                                                                     Foto Hernâni Von Doellinger

O dia apresentou-se-me com cara de boa pessoa. Acordei à pala do relógio de sala do vizinho, que me madruga pela casa dentro sem pedir licença, e fui à varanda com vista para o mar se me puser de lado. Pontual, pendurado no sítio do costume, o Sol brilhava que era uma categoria. Navegando num céu perfeito, desanuviado, gaivotas de torna-viagem exibiam credenciais, cagando de alto. Nas funduras da rua eternamente em obras, desviando-se em ziguezagues milagrosos a cada nova vaga do merdoso ataque aéreo, um barulhento gangue de cães vadios tentava organizar-se para a sessão de boas-vindas ao novo elemento. Como é do conhecimento geral, os cãos organizam-se sobretudo cheirando o cu uns aos outros e ganindo, tal qual como na política. O novo elemento era um velho cão-polícia reformado da Brigada de Combate ao Narcotráfico e acabado de sair do canil municipal após prolongada cura de desintoxicação segundo o Modelo Minnesota.
Em respeito pelo ritual iniciático, a canzoada alçava a perna uma vez atrás da outra em pneus de estimação marcados de véspera, aliviando-se com evidente prazer dos excessos de uma noitada de copos e cadelas. Percebe-se: agora que lhes gamaram as árvores, é para aquilo que os cães precisam dos pneus dos automóveis, para a ancestral cerimónia. Uma espécie de baptismo mas ao contrário.
Mesmo por baixo do meu nariz, um casal de gatos gordos e somíticos barafustava contra um bando de jovens pardais por causa do esqueleto de um carapau encravado entre os paralelipípedos levantados da rua recém-requalificada. Não era arqueologia, era fome. Mandei um berro cá de cima e prevaleceu o bom senso: gatos e pardais resolveram-se enfim pela partilha, ordens minhas, a metade da cabeça para os pardais, que têm melhores dentes.
É assim que eu gosto da minha rua, madrugadora, límpida, cheia sem gente, barcos no quintal. Todos nos entendemos a estas horas temporãs - eu, os pardais, os gatos, as gaivotas, os barcos, ainda que espanhóis, os cães, mesmo que ex-polícias. Olho-nos de fora de mim e vejo um comovente quadro de harmonia irracional. E o mar de Matosinhos fede como não há memória. Que mais se pode desejar como alento matinal?
Depois venho aqui ao computador, varejo as notícias e leio que Paulo Bento ainda fala como se fosse seleccionador nacional. Pronto, já me estragaram o dia.

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