quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Soares dos Passos 2

O noivado do sepulcro

Vai alta a lua! Na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila! Dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... Mas eis longe, ao longe,
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... Na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... Com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que, entre os ciprestes, alvejava ao fim,
Parou, sentou-se, e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei de amar,
"Porque atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! Engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem de entre os vivos se lembrará ainda
"Do pobre morto que na terra jaz!

"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" E, em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que, rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro de infernal prazer;
"E o olvido, o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra, sem vingança ter!

- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda,
Responde um eco, suspirando, além...
- "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinais, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela coroa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? Reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas ainda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas, sem a luz do amor?

"Saudosa, ao longe, vês no céu a lua?"
- "Oh vejo, sim... recordação fatal!"
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! Se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, de infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém, mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só
.


"Poesias", Soares dos Passos

(Soares dos Passos nasceu no dia 27 de Novembro de 1826. Morreu em 1860.)

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