sábado, 28 de novembro de 2015

Antero de Figueiredo 2

Chamo-me Ernesto, sou escritor e dobrei o cabo dos cinquenta. Há chapadas de cal nos meus parietais; rareiam-me os cabelos na fronte alta e escanteada; vincaram-se-me as rugas: - na testa, porque muito pensei; aos cantos da boca, porque muito sofri. A incandescência do meu olhar de pecado, ambição e audácia é hoje substituída, a maior parte das vezes, pela luz plácida da bonomia complacente, se não pela da piedade pelos outros e por mim... Essas mãos frenéticas que corriam pelo papel fora, à desfilada, sem parar nem emendar, aprenderam, contendo-se, a compor reflectidamente, com medida, precisão e propriedade; e, mais e melhor, religiosas, - a edificarem-se num gesto bento que desconheciam: erguerem-se a Deus para rezar.
Em tudo fui precoce: aos 19 anos, já tinha dois romances publicados! Esses livros eram relâmpagos da minha fantasia, explosões do meu temperamento de pólvora, incêndios da minha sensualidade nua e bruta, sem sombra de resguardo, sem rebuço de moralidade. Então, a Vida era para mim a vida instintiva dos meus sentidos desbocados: o sol ardia-me nas pupilas, estranha brasa me escaldava a boca voraz, o meu hausto sibilante sugava com avidez os perfumes do jardim da existência. Entendia eu que a mocidade tinha todos os direitos, todos. Deus era apenas o directo senhorio de uma propriedade - a minha alma - que eu devia usufruir exaustivamente. O meu dever de moço era um só: ser moço, isto é, gozar tudo que a vida contém e me ofeceria. E a vida gritava em volta de mim e eu gritava à vida! Meus desejos miavam como felinos, mugiam como toiros, rugiam como leões nas selvas. Uma única potência vital: o Desejo. Um único movimento: a avançada frenética para o ídolo - Mulher. Electrizado pela volúpia emanada de tudo que luz, ri e canta, no meu pequeno corpo de vime, a vibrar, a torcer-se, a contorcionar-se, ante o espectáculo desvairante da beleza feminina, os meus desejos eram bocas de vampiro, eram furiosas labaredas de línguas es carlates e bifarpadas que galopavam cúpidas e doidas. A alegria lúbrica estralejava nos meus risos de inferno; era uma prece pagã a minha súplica à carne; um hosana ímpio o meu credo e o meu hino furioso à beleza das linhas e da modelação de um maravilhoso corpo de mulher ardente.
E o meu coração indefeso andou só pelo mundo na vid'airada da tontaria humana!

"O Último Olhar de Jesus", Antero de Figueiredo

(Antero de Figueiredo nasceu no dia 28 de Novembro de 1866. Morreu em 1953.)

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