terça-feira, 24 de novembro de 2015

António Gedeão 3

Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta. 

Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina,
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de idantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura. 

Fuge, fuge, Leonoreta:
Vai na brasa, de lambreta. 

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa e bem segura. 

Com um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas. 

Na confusão dos sentidos
já nem percebe Leonor
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor. 

Fuge, fuge, Leonoreta
Vai na brasa, de lambreta.

"Máquina de Fogo", António Gedeão

(António Gedeão nasceu no dia 24 de Novembro de 1906. Morreu em 1997.)

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