sábado, 23 de janeiro de 2016

João Ubaldo Ribeiro 3

Pensamentos, palavras e obras

Em matéria de pecados, aliás em matéria de religião geral, eu sempre achei que a pior coisa é os pensamentos. Na aula de catecismo, que era depois da missa e antes do futebol, quer dizer, a gente só pecando porque não queria assistir o catecismo, nessa aula dona Maria José, com aquelas blusas dela de mangas fofolentas e os olhos piscando o tempo todo e a cara de doente, dizia que se peca por pensamentos, palavras e obras. Palavras e obras, certo, muito certo, certo. Mas pensamento é muito descontrolado, de maneira que todo mundo tinha dificuldades nessa parte, talvez somente dona Maria José não tivesse, porque tudo o que ela pensava era catecismo.
Muitas vezes perguntei a minha mãe - e não perguntei a dona Maria José, porque o que a gente perguntava a ela, ela mandava a gente estudar e escrever uma dissertação, para ler alto no outro domingo - como é que a pessoa fazia para não pecar por pensamentos e ela me disse que bastava não pensar nem besteira nem safadagem. Ora, isso está todo mundo sabendo, a questão é que a besteira e a safadagem aparecem o tempo todo, sem ninguém chamar. Mas de fato era uma coisa muito de admirar que os crescidos todos, na hora da comunhão, iam sem pestanejar, quer dizer, não tinham pecado nem por pensamento, porque senão não iam arriscar a receber o corpo de Cristo com tudo por dentro sujo imundo de pecados. Eu não, eu sempre tive problemas, porque primeiro nunca deixava de esquecer algum pecado e na hora que saía é que eu lembrava e aí ficava com vergonha de voltar ao padre e aí ficava achando que ia comungar sujo imundíssimo. Mas minha mãe disse que não podia fazer lista de pecados, onde já se viu, que na hora o Espírito Santo ajudava, mas ele nunca me ajudou, pelo menos eu nunca notei nada. Enfrentei bastante sofrimento.
[...]

"Livro de Histórias", João Ubaldo Ribeiro

(João Ubaldo Ribeiro nasceu no dia 23 de Janeiro 1941. Morreu em 2014.)

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