sábado, 9 de abril de 2016

Hoje, 9 de Abril, é Dia de Santo Velho

                                                                               Foto Hernâni Von Doellinger

A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou apenas Santo, como lhe chamávamos nós os íntimos, os da rua. Evidentemente que, para todos os efeitos legais, a minha rua tinha nome de data: Largo 9 de Abril. Eu, que até sabia da Batalha de La Lys, nunca consegui perceber o que é que a guerra de catorze a dezoito tinha a ver tão especialmente com a minha rua, e pelos vistos os doutores da Câmara também não, uma vez que de repente, não sei precisar quando, resolveram mudar-lhe o nome para Rua dos Bombeiros Voluntários. E fará um pouco mais de sentido, embora não tenha sido por isso: na minha rua havia realmente bombeiros em quase todas as portas, e nalgumas casas eram a família inteira.
A minha rua era um terreiro onde jogávamos ao espeto, ao pião e à bola, o que, neste último caso, arreliava sobremaneira a Milinha Parola, que ameaçava estraçalhar-nos o esférico à tesourada bastava que lhe fizéssemos alguma tangente aos vidros. A Milinha era Parola (ou Modista, que eu gostava mais) para se distinguir da Milinha Vaqueiro, quatro números acima. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava. Porque o Santo, ou não se chamasse assim, era sobretudo um território de paz, de famílias, de família. Os miúdos éramos todos uma irmandade, os pais e principalmente as mães às vezes é que não.
A minha rua era um largo com vista para o mundo. Tinha o poeta Zé de Castro, duas tílias e um cilindro. Queimávamos o Pai das Orelheiras, cantávamos as Janeiras e os Reis, desajudávamos nas vindimas do Sr. José e do Sr. António e nas desfolhadas do Sr. Tónio Quim, os três bombeiros e mestres de vida, íamos ao cinema, que era nas traseiras da rua, festejávamos o Santo António de Lisboa e de Pádua, vejam lá o cosmopolitismo, encostando a cascata ao cilindro abandonado se calhar por empreiteiro falido do lado de lá das casas do Sr. Agostinho Cachada e do Sr. José Sacristão, gente também de primeira e bombeiros obviamente. O nosso Santo António era de arromba, já aqui contei. Botávamos altifalantes, "Tango dos Barbudos", "Fado das Trincheiras", o "Je T'Aime Moi Non Plus", que me incomodava o andar e eu ainda não sabia porquê. Fogueteávamos a bom foguetear: eram foguetes de três-croas, foguetes envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, géu, trás, trás, adeus e até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo comprado no Rates, mais ou menos no sítio onde está agora vergonhosa e envergonhadamente escondido o monumento à Justiça de Fafe. Quase tudo comprado no Rates, devo corrigir-me, em abono da verdade: íamos em bando para nos aproveitarmos das distracções do homem, a antipatia enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos negros, e metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.

Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento proibido.

Ontem passei na minha rua. Sorte do caraças, vi a Dulce, tive de lhe explicar "sou o Nane", para não levar um par de estalos, e dei-lhe um beijo. A Dulce da minha infância, com uma netinha pela mão, disse-me que estou "muito bonito". E só me apetecia chorar pelo meu largo desaparecido.

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