segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Antero de Figueiredo 3

Que é a vida senão uma viagem? Que são as viagens senão temas de recordação?
Recordar!
O presente é inconsciente como a juventude - só na idade reflectida se mede o prazer que passou. O prazer é vivaz e efémero; a recordação vem esmorecida, mas pousa e fica. A alegria vale, sobretudo, pelo fio de doçura que deixa na saudade nevoenta... Quando fruímos um prazer, com a ardência do sol em chamas, estamos a preparar o luar desse gozo: o deleite brando e demorado de o relembrar.
É como o sonho do amor, que se desdobra na ilusão solar de construir e na ilusão lunar de recordar. Tudo ilusão! Mas a ilusão é a mentira fecunda da vida. É a própria vida. A ilusão é a maior verdade, porque é a mais cons-tante; é a maior beleza, porque universalmente, eternamente atrai e seduz. O prazer vale um pouco pelo que é, e muito pelo que será. Quem goza, semeia saudade. O mais delicado perfume é o perfume do que foi perfume...
Recordar é acordar. Só acordados somos vivos. No presente somos mortos. Recordando, ressuscitamos. E então vivemos conscientemente a vida inconsciente que por nós correu.
Recordar é poetizar. Tão nobre é o valor da recordação que, às vezes, recordar uma viagem comum é desvulga- rizá-la, é engrandecê-la. Da realidade ficou apenas uma imagem depurada - a essência da verdade que existiu. A recordação superioriza, porque espiritualiza. O tempo é o poeta da saudade.

"Jornadas em Portugal", Antero de Figueiredo
 
(Antero de Figueiredo nasceu no dia 28 de Novembro de 1866. Morreu em 1953.)

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