sábado, 18 de março de 2017

Augusto Abelaira 4

Ou então, se haverá realmente, Justino Soares, alguma mulher, a calma repousante dum rosto de mulher, duns compridos cabelos de azeviche (que é o azeviche?), dumas palavras que desejas ouvir e nunca ouviste, se não terás falado assim para te safares do jornal, do trabalho irrespirável, e para que eu te inveje, neste fim de tarde, ao pensar daqui a uma hora que enquanto bebo café e converso O arquimortes inutilmente com amigos sobre os boatos que já não há (aquelas velhas revoluções que estavam para rebentar no dia seguinte e que nunca rebentavam), tu, grande maroto!, te esfregas na cama com uma gaja bestial - mas, na realidade, ou porque ela não aparece ou porque nunca existiu, estarás, quem sabe?, a tomar uma cerveja, uma simples cerveja, na mais modesta das leitarias do teu bairro.
E se eu te armasse uma ratoeira? Se fosse à tua procura por todos os cafés de Lisboa e ao encontrar-te dissesse cruelmente: "Então essa gaja?" Que me responderias, conquistador imaginário? Mas se essa mulher não existe e tu procuras apenas um pouco de sonho, invocando-me como testemunha para dares mais realidade ao sonho, então porque lhe chamas gaja em vez de princesa das laranjas de oiro, mulher de branco, raio de sol, porque te apostas em sonhar tão baixo?

"O Arquimortes", Augusto Abelaira

(Augusto Abelaira nasceu no dia 18 de Março de 1926. Morreu em 2003.)

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