segunda-feira, 27 de março de 2017

Pelópidas Soares

Inusitada a aventura vivida por Espantalho. Vendo-se, difícil de acreditar. Extraordinária mesmo em gente de alta categoria, mais singular com um tipo reles, simples fumega, asilado de zona - quem diria?
Viera da palha da cana, onde seus ascendentes tinham uma tradição de quatrocentos anos de servidão e miséria. Milagre de sobrevivência contra todo o conceito de calorias, proteínas, sais minerais.
Magro e desengonçado, libertara-se do eito, do sol e da chuva no cambito. Instalara-se na zona que prolonga o canavial, bagaceira humana onde, ainda adolescentes, as mulheres chegam trazendo no corpo e na alma o pelo da palha da cana ou as limalhas das oficinas. Mocinhas analfabetas, dos campos canavieiros ou semialfabetizadas, das sombrias vias operárias. Mesmo assim, elas não chegaram para o bico do Espantalho.
Gestos largos de palhaço, corpo elástico nos trejeitos, alguém gritou, certa noite, na pensão de Ernestina do Cabelão:
- Espantalho!
Risadagem geral, ecoando por todas as bancas, nome preciso e insubstituível, que ficou para sempre, perdendo o nome do batismo.
O que não tinha grande importância: não era registrado em cartório e nunca fora recenseado. Não figurava, portanto, na estatística nacional.


"Alaursa - Contos", Pelópidas Soares

(Pelópidas Soares nasceu no dia 27 de Março de 1922. Morreu em 2007.)

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