segunda-feira, 17 de abril de 2017

O que o pessoal quer é sangue, molhanga...

Quando eu era mocico e a ambulância saía de sirene em altos berros acudindo a um desastre, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital para esperarem pela volta e assistirem ao espectáculo. A sirene, tomo agora consciência, era mesmo só para avisar a mironagem da vila, porque o trânsito na minha terra, década de sessenta do século passado, contava-se pelos dedos, isto é: meio carro de quarto em quarto de hora e sem sentidos proibidos. Apitar era vaidade...
Ora bem: nas escadas do hospital, o bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquele povo todo e tolo que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado, comandadas pela Senhora Rosalina e pela Carmo, minhas queridas vizinhas no Santo Velho. Não sei como é que a Câmara nunca se lembrou de lhes cobrar bilhete...
Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido é ali em cima propositado e certo, porque, naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital e enchiam a barriga de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! Estavam ali no relambório, a dar água sem caneco e a benzer-se na direcção da Igreja Nova, Valha-nos Deus!, e o Tribunal do outro lado, Não há direito!, mas sem perder pitada, numa expectativa, numa excitação diria que sexual. Vampiros da desgraça alheia, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte, e era então um regalo, um fartote, uma comoção, o êxtase...
Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do hospital. Sentam-se em casa e vêem na televisão.

P.S. - Fafe daquele tempo era uma terra igualzinha ao Portugal daquele tempo: ignorância, pobreza, tiros, facadas, sacholadas, amantes e pares de cornos, desastres, muito vinho, mixoscopia. Quer-se dizer: Fafe e Portugal daquele tempo eram iguaizinhos ao país que somos e temos agora entre mãos. As cabeças velhas é que cuidam que "antigamente havia respeito" e que o destempero começou ontem...
E outra coisa: descobri hoje a palavra mixoscopia e acho-lhe um piadão. Tinha de a enfiar e enfiei. Quem me lê sabe que eu gosto de palavras esquisitas.

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