sábado, 20 de maio de 2017

Um tostãozinho prò Santantónio...

Foto Hernâni Von Doellinger

A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou apenas Santo, como lhe chamávamos nós os íntimos, os da rua. Evidentemente que, para todos os efeitos legais, a minha rua tinha nome de data: Largo 9 de Abril. Eu, que até sabia da Batalha de La Lys, nunca consegui perceber o que é que a guerra de catorze a dezoito tinha a ver tão especialmente com a minha rua, e pelos vistos os doutores da Câmara também não, uma vez que de repente, não sei precisar quando, resolveram mudar-lhe o nome para Rua dos Bombeiros Voluntários. E fará um pouco mais de sentido, embora não tenha sido por isso: na minha rua havia realmente bombeiros em quase todas as portas, e nalgumas casas era a família inteira.
A minha rua era um terreiro onde jogávamos à macaca, ao moche, ao mamã-dá-licença, ao espeto, ao pião, à carica, ao berlinde e à bola, o que, neste último caso, arreliava sobremaneira a Milinha Parola, que ameaçava estraçalhar-nos o esférico à tesourada bastava que lhe fizéssemos alguma tangente aos vidros do ateliê de costura. A Milinha era Parola (ou Modista, que eu gostava mais) para se distinguir da Milinha Vaqueiro, quatro números acima. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava. Porque o Santo, ou não se chamasse assim, era sobretudo um território de paz, de famílias, de família. Os miúdos éramos todos uma irmandade, os pais e principalmente as mães às vezes é que não.
(A minha rua tinha também umas esquininhas muito jeitosas para brincarmos ao esconde-esconde e aos médicos.)
A minha rua era um largo com vista para o mundo. Tínhamos o poeta Zé de Castro, a brasonada Casa do Santo, com capela, lá em baixo, e mais duas capelas na parte de cima, os tascos do Paredes e do Zé Manco. Tínhamos uma quelha, uma poça, duas tílias e um cilindro. Tínhamos tudo e o futuro por percorrer. Queimávamos o Pai das Orelheiras, saltávamos a fogueira, cantávamos as Janeiras e os Reis, desajudávamos nas vindimas do Sr. José e do Sr. António e nas desfolhadas do Sr. Tónio Quim, os três bombeiros e mestres de vida, íamos ao cinema, que era nas traseiras da nossa rua, festejávamos o Santo António de Lisboa e de Pádua, vejam lá o cosmopolitismo, encostando a cascata ao cilindro abandonado, se calhar por empreiteiro falido, do lado de lá das casas do Sr. Agostinho Cachada e do Sr. José Sacristão, gente também de primeira e bombeiros obviamente. O nosso Santo António era de arromba. Os mais pequenos começávamos com o peditório - Um tostãozinho prò Santantónio... -, e a minha mãe não gostava nada. O meu irmão Nelo e eu pedíamos emprestados ao meu avô da Bomba, sem ele saber, meia dúzia de festões, uns bons metros de gambiarras e algumas figurinhas de presépio que munificavam na cave dos Bombeiros. O principal da bonecada, king size, era alugado em Santo Ovídio, numa casa quase em frente à serração, se não me engano. Íamos ao musgo do monte e à areia das obras, esgaçávamos pernadas de carvalho para ogivar o trono do santinho, uma mangueira atravessava a estrada para abastecer de água o laguinho do pescador, obviamente com repuxo. O laguinho. Botávamos altifalantes, "Tango dos Barbudos", "Fado das Trincheiras", o "Je T'Aime Moi Non Plus", que me inchava as calças e incomodava o andar e eu ainda não sabia porquê. Fogueteávamos a bom foguetear: eram foguetes de três-croas, foguetes envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, géu, trás, trás, adeus e até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo comprado no Rates, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, mais ou menos no sítio onde está agora vergonhosa e envergonhadamente escondido o monumento à Justiça de Fafe. Quase tudo comprado no Rates, devo corrigir-me, em abono da verdade: íamos em bando para nos aproveitarmos das distracções do homem, a antipatia enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos negros, e metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.

Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento proibido.

Aqui atrasado passei pela minha rua e, sorte do caraças, vi a Dulce, abordei-a, tive de lhe explicar rapidamente "sou o Nane", para não levar um par de estalos, e dei-lhe um beijo. A Dulce da minha infância, com uma netinha pela mão, disse-me que estou "muito bonito". E só me apetecia chorar pelo meu largo desaparecido.

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