quinta-feira, 31 de agosto de 2017

A ver 49ers

Foto Hernâni Von Doellinger

Facebookando

- Comporte-se. Baixe lá essas maiúsculas, que eu não sou surdo...

Bolinhos de bacalhau no Tarrenego! 9

Foto Hernâni Von Doellinger

Não instagrem isto, por favor!
O jornal Público ensinou-nos ontem o que se deve fazer quando "um prato absolutamente fenomenal (ou não tão fenomenal assim) chega à mesa." E então o que é que se faz? "Come-se? Não, primeiro fotografa-se." E coloca-se no Instagram. Depois, suponho, pede-se a continha, sai-se de casa ou do restaurante chique, "mete-se" o cachecol e vai-se deglutir duas ou três bifanas e uma avestruz à Conga.
Eu não sei o que é o Instagram (aliás cuidava que se chamava Instragam e só mudei de ideias ainda agora depois do computador me corrigir dezasseis vezes), e nem me aquece nem me arrefece que pensem que estou a mangar. Sei é de cozinha e de jornalismo também não.
Quem escreve sobre gastronómicas matérias no jornal da Sonae vê-se que tem inúmeros mestrados e consideráveis doutoramentos em Técnicas de Titulagem, mas também se percebe que é gente que só entra na cozinha para perguntar à mãezinha "o que é o comer". Não nego à partida que estas senhoras e estes senhores jornalistas sejam experts em lasanha pré-cozinhada do Lidl ou em rissóis e alegados bolinhos de bacalhau congelados do Pingo Doce, posto que fazem das tripas coração para que o patrão não saiba. Falta-lhes é o resto, a basezinha, como diria o nosso Eça, que, esse sim, sabia de mesa.
Vamos supor: um prato realmente "absolutamente fenomenal" como, não vamos mais longe, um arrozinho de grelos com fanequinhas fritas. Chega à mesa e tira-se-lhe fotografias em vez de se lhe garfar com toda a galhardia? Então vou explicar o que se passa entretanto: o malandro do arroz coalha, fica arroz de hospital, argamassa de atirar às paredes, e as fanecas, esse peixinho tão honesto, esfriam, nem que não seja neste Inverno de gelo, perdem a graça, afeiam-se, desapetitam-nos. Uma tragédia...
E atenção que as fanequinhas frias ainda vá lá, mas no tasco e no Verão. E verão que tenho razão (esta veia poética que não me larga...), quando um dia perderem a cabeça e experimentarem, o Verão e o tasco. Já o arroz segue directamente para o balde do lixo, tamanha dor de alma ainda por cima nestes tempos de incerta TSU.
Também é verdade: há pratos que são como a vingança, devem ser servidos frios, e por isso até se chamam pratos frios. E estes podem ser fotografados à moda das sessões de casamento, quero dizer: entre as oito da manhã e as seis da madrugada do dia seguinte. Quanto ao resto, por amor de Deus, escrevam do Trump, não me fodam, não fodam isto. Creio que posso dizer melhor: respeitosamente, comam fotografias à vontade se, tipo, lhes souber bem, mas, por favor, não me instagrem a comidinha a sério (à séria, se lido em Lisboa)...

Já agora: um tasco é um tasco. Uma tasca ou uma tasquinha são outra coisa...

P.S. - Publicado originalmente no passado dia 22 de Janeiro.

O dilema do almoço de domingo
Os domingos têm este problema, e quem seja fafense sabe do que falo: tripas ou vitela assada? Mais difícil ainda: tripas e vitela assada? Essa é a verdadeira questão, o dilema do almoço dominical. No último domingo fiz massa à lavrador e estava bem boa...

E, já agora, outro já agora: onde escrevi "tripas ou vitela assada", deve falar-se tripasss... ou bitela assada. À moda de Fafe.

Baywatch à moda do Porto 8

Foto Hernâni Von Doellinger

O lobisomem

Lobisomem, ou homem dos lóbis, deverá melhor dizer-se e escrever-se lobista - palavra mais lisonjeira e já dicionarizada...

Caminho 373

Foto Hernâni Von Doellinger

Celso Emilio Ferreiro 5

O teu embigo é o centro do mundo

Bardo dos viosbardos,
muso don pío, pío
versolari monótono
fillastro de Narciso,
de cotío mirándote
o circunflexo embigo.
Homo-sapiens
lírico-onírico
retórico
putativo
non comungo
contigo
mais non lle fai
poetiso
cóntame
os aburridos
anales e calendas
dos teus ritos
dos teus problemas
mínimos
por exemplo
os suspiros
dos teus insomnios
pírricos,
o culto a Onán
do teu suxetivismo,
os vulgares
mitos
do teu ridículum
vite, vate cativo.
Fálame
sin mimos
da proxenie cen leites
do teu siño
enrugado
e petiso,
pousafol
papafigos
cantamañás
ambiguo
neutro
propicio
do ademán
oblicuo.
Anda,
vicetipo,
conxúgame os teus verbos
favoritos
na pirmeira persoa
do indicativo.
Fártate do teu nome,
préñate de egotismo,
e cando alguén che fale
dos malinos
tempos
en que vivimos,
aldraxados
i ofendidos,
mastigados
e mordidos,
refuga
os indicios,
confirma
o teu indiño
pacto
de pillo,
rexeita
o compromiso
cos ventos
alisios,
cos amenceres
prohibidos
(o engagement
é un perigo)
Aplaude, gaba, eloxia
o confortábel conformismo,
o cardiograma
íntimo,
o perifol
metafísico,
cun aceno
esquivo,
ninfo Exerio
disolutivo,
e marmura
no ouvido
do pesquisador
as pistas no bosque
dos que escriben os himnos.
E sigue piando
helénico e tranquío
ise non tan leve
delator pío pío,
pro dime gran merdeiro,
bardo dos brancos lirios,
aedo encortellado
parente de Narciso,
public-relatio-man
do fuxedismo,
cómo non estás canso
de mirate o embigo.


"Obra Completa 2", Celso Emilio Ferreiro

(Celso Emilio Ferreiro nasceu no dia 4 de Janeiro de 1912. Morreu no dia 31 de Agosto de 1979.) 

Os passarinhos, tão engraçados 32

Foto Hernâni Von Doellinger

Olavo Drummond 2

Jogo e canto

Se caio, levanto,
Aperto meu passo,
Enxugo meu pranto,
Alegria me vem,
Coragem também,
Me faço de santo
Construo um altar...
Esqueço meus erros
E se volto a errar
Faço da luta
Um eterno jogar
Pois no jogo da vida
O lance é tentar
E parada vencida
Comigo não conta
Não pode contar...

Se caio, levanto,
A estrada
A um canto
E o segredo da vida
É aprender a cantar.


"Ensaio Geral", Olavo Drummond

(Olavo Drummond nasceu no dia 31 de Agosto de 1925. Morreu em 2006.)

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Talant de bien faire 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Eduardo Prado

Houve um dia um bispo que se achava detido na ilha das Cobras.
O caso é conhecido: sabe-se quem foi o bispo e sabe-se o que então houve e também se lembram todos de que a notícia de estar s. exc. em prisão tão mal nominada encheu de horror o beatério europeu, que então ouviu falar, ao que parece, pela primeira vez, deste ignorado Brasil.
As devotas damas, as pálidas monjas, os adocicados pregadores imaginaram logo o príncipe da Igreja atacado de todos os lados por centenas de víboras terríveis e horrorosas, de que s. exc. se defendia a golpes de virtudes evangélicas e, talvez, com o auxílio de um bom báculo de piúva.

"Viagens", Eduardo Prado

(Eduardo Prado nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1860. Morreu no dia 30 de Agosto de 1901.)

Vida de cão 238

Foto Hernâni Von Doellinger

É só fazer as contas...

Uma camisa-de-onze-varas cairá bem num minhoto dos sete costados?...

Offshore, se fashavore 32

Foto Hernâni Von Doellinger

J. M. Pereira da Silva 2

A poesia, essa melodia da alma e do coração, essa primeira voz do homem, que se desprende, balbuciando apenas, essa linguagem mística, que conhece as emaranhadas florestas, os caudalosos rios, os áridos desertos, e as alcantiladas montanhas; a poesia, que é a alma do universo, e que existe entre os povos civilizados, e também no meio das tribos nômades, e desamparadas, a poesia foi o primeiro ramo da literatura que cultivaram os povos do Brasil. Sua civilização não se estendia a muito, como acabamos de ver, apenas algumas escolas de gramática existiam; apenas alguns padres ensinavam os primeiros rudimentos das ciências; e durante o século XVI, apenas de algum brasileiro, de algum homem, que respirasse, nascendo, a atmosfera de amor e de delícias deste país novo e encantador, se contam versos e poesias, pela mor parte latinas, que constituem toda a literatura brasileiro do século XVI, e que se perderam quase todas pelas livrarias dos conventos dos religiosos, poucas e muito poucas tendo chegado até nossos dias.

"Parnaso Brasileiro", J. M. Pereira da Silva

(J. M. Pereira da Silva nasceu no dia 30 de Agosto de 1817. Morreu em 1898.) 

Caminho 372

Foto Hernâni Von Doellinger

Leandro Carré Alvarellos 2

Ramón.- ¡Negouse!
María.- (Que deixa a costura e chégase á él impaciente) ¿De maneira...?
Ramón.- Que xa non séi que facer, nin como procurarme ese diñeiro que precisamos.
María.- ¡E Miguel ten que ir â aldea!
Ramón.- Si, ten que ir â aldea; ten que saír d'esta casa sen sol, sen âr; e de non poder ir á Suiza, á un sanatorio, ten que ir â aldea...
María.- ¡Oh! ¡É horrible esto, meu Dios, é horrible!
Ramón.- Horrible e vergoñoso, María. Levar toda a vida traballando, buscar e facer a riqueza para outro, e á final, cando o corpo doente, fatigado ou podre de vivir á sôma, respirando o pô dos almacés insanos, vivindo en locaes antihixíenicos, precisa un descanso ou un sanatorio, atoparse con que por toda consideración aquel que o noso traballo e a nosa intelixencia enriquecen nos dá como unha esmola a mitá do sueldo que tiñamos... e tal vez se a enfermedá dura moito, hastra ese socerro é suspendido.
María.- Pobre Miguel... Mais que á min coase quería a casa en que traballaba, onde foi deixando a saúde...
Ramón.- Non traballaría mais se o comercio fose seu.
María.- ¡E o pago dos seus desvelos...!

"O Pago, drama en tres actos", Leandro Carré Alvarellos

 (Leandro Carré Alvarellos nasceu no dia 30 de Agosto de 1888. Morreu em 1976.)

terça-feira, 29 de agosto de 2017

A ver navios 141

Foto Hernâni Von Doellinger

O irresponsável

Dizia o irresponsável: - Seja o que Deus quiser...

Bolinhos de bacalhau no Tarrenego! 8

Foto Hernâni Von Doellinger

O nosso fumeiro e o gourmet de carregar pela boca
Do outro lado da minha estrada (já repararam que, nas nossas cidades, as ruas agora não são ruas, são estradas, e estradas com engarrafamentos e perigosas?), dizia: do outro lado da minha estrada há uma daquelas pequenas lojas tipo "regional gourmet". Azeitonas em frasco, cogumelos em frasco, meles em frasco, geleias em frasco, licores em frasco, frascos em frasco, dois presuntos em fraco, azeites e vinhos em caro, prateleiras em fiasco. Num benévolo gesto de boas-vindas, mal abriu o estabelecimento fui lá cheirar e avisar que o conceito é uma treta e que gourmet a sério é em minha casa, mesmo em frente, porque aqui a comida é muito boa, e gourmet deveria ser isso, mas não estamos abertos ao público. O gourmet - a ver se eu me sei explicar - quer-se da boca para dentro e não da boca para fora, mas não faço concorrência.
Estas lojinhas abrem e infelizmente não vendem nada. São "regionais" porém franchising, very tipical e very vazias, de produtos e clientes. O toque de "qualidade" é dado em palavras "estrangeiras", o que só abona a favor do produto made in Portugal. A loja da minha estrada tinha primeiro uma menina, que passava a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar.
A loja não abria desde que o ano entrou. Pensei que tinha sido o fim. Mas graças a Deus enganei-me, que de desemprego já basta o que basta. A loja reabriu hoje: não está lá a menina, mas um rapaz. Que passa a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar. Nas costas, os dois presuntos pendurados no cabide tisicam e agradecem - assim se produz o genuíno fumeiro nacional.

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Janeiro de 2014.

Gourmet? Nos tomates, se faz favor.
Lembram-se da lojinha tipo "regional gourmet" que abriu do outro lado da minha estrada? Fechou. Estava em pousio desde o princípio do ano, arejou naquele sábado que aqui contei, acreditei-me, mas no sábado seguinte - fez ontem oito dias - veio uma carrinha limpar as escanzeladas prateleiras, três sacos de plástico bastaram e lá se foi mais um posto de trabalho, que é o que a mim me importa.
Fico infeliz por ter razão: o conceito era um treta. Esta gente não sabe o que é massa com bacalhau e o prato a esbordar...

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Fevereiro de 2014. 

Ó malhão, malhou

Foto Hernâni Von Doellinger

Apolinário Porto-Alegre 4

Caía neve em flocos. O frio, intenso. O mistério daquela natureza recolhida e inânime, profundo e terrível. Não tinha só a melancolia do deserto, o vago e indefinido, que coam na alma as savanas e matas americanas, tinha mais o tom baço, a desoladora taciturnidade, a paralisia, a inércia, a aparência de cadáver, que ressaltam da quadra hibernal. Só quem viajou por noites assim através do ermo selvagem pode compreender a expressão aziaga que lhe é própria, os sentimentos inefáveis que ele desperta, expressão e sentimentos que jamais a linguagem conseguiria reproduzir, são tão indescritíveis! Então cada folha, cada filamento de relva, cada seixo parece ter um segredo medonho a contar um cochicho de torva ameaça! Tudo se anima, tudo fala.
O rochedo agita-se, caminha, rodeia-nos e solta uma gargalhada de infrene sarcasmo. A árvore tem o gesto iracundo. O vendaval ruge uma blasfêmia em cada lufada. E o viajante acha-se cercado de calibans e pavorosas lâmias. A noite, o inverno e a solidão o amesquinham à face do mundo e à face de Deus. Ao resfriamento do corpo aduna-se o resfriamento da moral.

"O Vaqueano", Apolinário Porto-Alegre

 (Apolinário Porto-Alegre nasceu no dia 29 de Agosto de 1844. Morreu em 1904.)

Homenagem aos ex-combatentes do Ultramar

Foto do arquivo pessoal do ex-pára-quedista fafense ÁLVARO MAGALHÃES

Homenagem aos ex-combatentes do Ultramar naturais ou residentes em Oliveira do Douro, Gaia. Dia 9 de Setembro, um sábado, com início às 10 horas, no salão nobre da Junta de Freguesia. Comunicações de Graciete Cruz, "Traumas psicológicos", e de Jaime Froufe Andrade, "Não somos tara perdida". Graciete Cruz é psicóloga da ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e Froufe Andrade é jornalista, ex-alferes ranger em Moçambique e autor do livro "Não sabes como vais morrer". Mais informação, aqui.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Feira Medieval de Leça do Balio 2017


A Feira Medieval de Leça do Balio (Os Hospitalários no Caminho de Santiago) encerra a época 2017 de recriações históricas em Matosinhos. Decorre de 7 a 10 de Setembro, ao redor do Mosteiro de Leça do Balio. Dança, música, saltimbancos, falcoaria, torneios a cavalo, treino de armas, recriação do casamento de D. Fernando com D. Leonor Teles, actividades para crianças. Mais informação, aqui. Horários e preços de entrada, aqui.

Lugares-(in)comuns 275

Foto Hernâni Von Doellinger

Directo ao assunto

- Ora então o que é que o trouxe aqui?...
- O autocarro: o 502.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 39

Foto Hernâni Von Doellinger

Lourenço Diaféria 2

Para uma garota de quinze anos

Nós a trouxemos para casa logo nos primeiros dias do mês de novembro, faz quinze anos. Tinha o rosto miúdo, um tufo enroladinho de cabelos pretos, e os olhos já prometiam ser o que são hoje: janelas escancaradas sob cílios longos. Chorava nas horas certas. Costumava tomar a última mamadeira da noite, ou largar o peito da mãe, já adormecida, e assim varava a madrugada até as primeiras luzes do dia.
Aprendeu a sorrir com a precocidade das crianças que vão ser alegres, e ficamos surpresos ao ver que o bebê descia do berço e ensaiava os passos na direção dos braços que o aguardavam. Cresceu com jeito de carneirinho: um carneirinho macio que gostávamos de carregar no colo, até que seus pés se desprenderam de todo e buscaram o contato com o chão de cimento, conquistando a gloriosa sujeira da infância.
Depois do banho, penteada, perfume de sabonete, se encolhia junto às minhas mãos e me aquecia com o calor de seu pijama de flanela.
Vejo-a de lancheira cor-de-rosa descobrindo a primeira tarde na escola, jardim onde se reuniam outras crianças de sua idade.
Um dia me trouxe um desenho pintado com todos os lápis de cor que eu lhe havia dado. Eu disse: "Está muito bonito!".
E era verdade.
Ganhou cartilha. Descobriu a música que as letras fazem quando se misturam a outras letras. Fez a primeira composição com tinta, ficou com receio de tirar nota baixa, roeu as unhas, freqüentou uma escola-modelo no Bexiga (magnífico projeto de ensino depois reduzido à expressão mais simples de uma escola como outra qualquer).
Nós a criamos com simplicidade e ternura.
[...]

"Para Uma Garota de Quinze Anos", Lourenço Diaféria 

(Lourenço Diaféria nasceu no dia 28 de Agosto de 1933. Morreu em 2008.)

I want to ride my bicycle 12

Foto Hernâni Von Doellinger

Hermes Fontes 2

Jogos de sombras
 
Sempre que me procuro e não me encontro em mim,
pois há pedaços do meu ser que andam dispersos
nas sombras do jardim,
nos silêncios da noite,
nas músicas do mar,
e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos
nesta serena unção crepuscular
que lhes prolonga o trágico tresnoite
da vigília sem fim,
abro meu coração, como um jardim,
e desfolho a corola dos meus versos,
faz-me lembrar a alma que esteve em mim,
e que, um dia, perdi e vivo a procurar
nos silêncios da noite,
nas sombras do jardim,
na música do mar…
 

"A Fonte da Mata", Hermes Fontes 

(Hermes Fontes nasceu no dia 28 de agosto de 1888. Morreu em 1930.)

Vida de cão 237

Foto Hernâni Von Doellinger

Sá de Miranda 5

[O sol é grande: caem com a calma as aves]

O sol é grande: caem com a calma as aves,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam de amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Também mudando-me eu fiz doutras cores:
E tudo o mais renova, isto é sem cura!


Sá de Miranda 

(Sá de Miranda nasceu no dia 28 de Agosto de 1481. Morreu em 1558.)

Espelho meu, espelho meu...

Foto Hernâni Von Doellinger

Teixeira de Melo 2

Fantasia
 
Náiade viva da legenda antiga,
Deixa o seio do rio em que te encantas!

Dá-me um riso de amor, gota do orvalho
Que em noites de verão desperta as plantas.
 

Vem às horas dos pálidos vampiros
Sobre as asas em pó das borboletas!

Algum silfo talvez te espere em cuidos
Sobre os seios azuis das violetas!
 

Não vês a natureza a sono solto
Nos braços do silêncio, imóvel, fria?

A alma vagando, estrela doutros mundos,
Pelos campos da loira fantasia?
 

E os ventos que adormecem como a noite
Nos cabelos das árvores do vale?

Nem soluçam gemidos que te assustem
Esse mortos que dormem no ervaçal.
 

Desce às horas do amor e dos mistérios!
Poisa o pé sem temor... é chão de flores!
Quando os vivos ressonam como os mortos,
Vem banhar-te comigo em mar de amores!
 

Do luar aos clarões que te acordaram
Ouve-se a estrela a cintilar dormindo;
Ouve-se a brisa a desfolhar saudades;
Ouve-se a folha a suspirar caindo!


Vem, flor do rio perfumada em risos!
Vem, flor dos bosques orvalhada em pranto!
Mas, se inda assim o coração te treme,
Dessas asas que tens faze o teu manto.


Dá-me um hino dos teus na voz magoada;
Dá-me um canto do céu na voz tristinha!
Já que o mundo dos vivos me abandona,
Vem, princesa do vale, vem tu ser minha!


Vem teus sonhos de amor que a alma embalsama
Desfolhar sobre mim e o meu futuro!
O mundo não te espreita! e só da noite
Brilham olhos de Deus no manto escuro. 


Mas, se a aurora acordar teu pai que dorme?!
Se a brisa despertar no campo as flores?!
Vem sempre! um anjo deve amar mais cedo,
Mais cedo enlanguescer, morrer de amores!

"Sombras e Sonhos", Teixeira de Melo

(Teixeira de Melo nasceu no dia 28 de Agosto de 1833. Morreu em 1907.)

Baywatch à moda do Porto 7

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 27 de agosto de 2017

Para consumo da casa

Dizia bem a tabuleta colocada à porta do bar de alterne com quartinhos no andar de cima: "Os produtos expostos são para consumo no estabelecimento".

A ver navios 140

Foto Hernâni Von Doellinger

António Reis

Depois das 7

Depois das 7
as montras são mais íntimas


A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa


E a luz torna mais belo
e mais útil
cada objecto

"Poemas Quotidianos", António Reis

(António Reis nasceu no dia 27 de Agosto de 1927. Morreu em 1991.)

Vida de cão 236

Foto Hernâni Von Doellinger

Orlando Martins Teixeira

Azul

Chapéu azul, vestido azul de azul bordado,
Azuis o pára-sol e as luvas, senhorita,
Como um lótus azul por um deus animado,
Passa toda de azul, por mil bocas bendita.

Há um bálsamo azul nesse azul que palpita,
Misticismos de um mundo há muito em vão sonhado,
Azul que a alma da gente a idolatrá-la incita,
Azul claro, azul suave, azul de céu lavado.

Deixa na rua um rastro azul que cega e prende,
Não sei quê de anormal, de fantasma ou de duende
Que prende os pés ao solo e ao mundo os olhos cerra;

Vendo-a, não se vê mais nada que o azul, tonteia...
Como num sonho azul, logo nos vem à ideia
Um pedaço de céu azul passeando a terra.

Orlando Martins Teixeira

(Orlando Martins Teixeira nasceu no dia 27 de Agosto de 1875. Morreu em 1902.)

Caminho 371

Foto Hernâni Von Doellinger

Florencio Delgado Gurriarán 3

Hino ao viño 

¡Groria a Deus!
Louvanzas a El-Señor,
que, encol da probe terra,
esta benzón botóu
do viño das cepeiras!
¡Groria a Deus!
¡Louvanzas a El-Señor!
 


Por nos redimir
Cristo o sangue deitóu;
aquel sangue
mouro acio o aparellóu;
na vindima
(nova e leda paixón)
o acio mouro fará de redentor
pra as penas desbotar
pra nos redimir da dor.
 


A navalla, cal Xuncras,
bico frío lle dará,
xudeus vindimaregos
terano de apreixar;
baixo os pes dun saión
o sangue deitará;
na campa dunha adega
terano de enterrar;
e ledo resurrexit
na mostada terá.
 


Na cunca, probe cálix
hase de comungar
pra limparnos de xenreiras,
pra de dôres nos ceibar,
pra esquecer falcatruadas,
pra o corazón aledar.
 


O acio mouro
sofriu fera paixón
¡Groria a Deus!
¡Louvanzas a El-Señor!
 


Nemigo das tristuras
e pai das risas,
amolece os traballos
da nosa vida;
fai falar aos calados,
nobre ao cativo;
se hai medo, da carraxe,
fogo, si hai frío.
El escorrenta os demos;
el quita o mal de ollo;
e faille a figa as meigas;
el resucita os mortos;
el da forzas
pra camiñar polo mundo;
onde el rixa
non hai choros nin luitos.
 


¡Groria a Deus!
¡Louvanzas a El-Señor!


"Cantarenas", Florencio Delgado Gurriarán

(Florencio Delgado Gurriarán nasceu no dia  27 de Agosto de 1903. Morreu em 1987.)

sábado, 26 de agosto de 2017

Tocam os sinos da torre da igreja 22

Foto Hernâni Von Doellinger

Cataminha, catatua, catadela

- É uma catatua esse pássaro tão vistoso que trazes ao ombro?...
- É, é: uma cataminha.

Bolinhos de bacalhau no Tarrenego! 7

Foto Hernâni Von Doellinger

Fredinho Bastos
Eu ia ver o Rali com o Fredinho Bastos. O Rali era um acontecimento emocionante por que esperávamos um ano inteiro e que se dividia em três partes, como jogo e meio de futebol: a viagem até à Lagoa, sempre em rali a partir de Medelo, a passagem do rali propriamente dito, que para nós os dois acabava logo após o sétimo ou oitavo carro, e a merenda que se seguia, nem que chovessem canivetes. Eu, por mim, ficava a ver o resto dos concorrentes até ao fim, mas o Fredinho fazia questão de me ensinar a relatividade das coisas e a prioridade de umas sobre outras. "O rali já acabou, isto agora não é nada. Vamos mas é comer", dizia todos os anos, sem querer saber sequer a minha opinião. E lá íamos atacar o farnel, preparado com todo o carinho pela sua mulher - uma Senhora a quem devo muito mais do que apenas bolinhos de bacalhau e panados, aliás excelentes.
Fazíamos o caminho de regresso até ao carro pela estrada do troço de competição, encostando à berma quando se aproximava o roncar de mais um motor, mas (o Fredinho tinha razão) aquilo era só bazófia, muito roncar e pouco motor. Dava tempo para tudo. Até para cumprimentar pilotos e penduras da segunda metade da tabela, que estavam no largo da famosa Igreja de Nossa Senhora das Neves ainda à espera da ordem de saída. O Fredinho conhecia aquela malta toda. Ele, Alfredo Bastos, também tinha sido corredor de ralis.
Portanto sabia que, depois de Jean-Luc Thérier, Rafaello Pinto, Markku Alen, Hannu Mikkola (com Jean Todt, o actual presidente da FIA, como navegador), Ove Andersson, Sandro Munari, Bjorn Waldegaard, Jean Pierre Nicolas, Walter Röhrl ou Michèlle Mouton, pouco mais havia que realmente interessasse ver. As bombas já tinham passado: os Alpine Renault, os Fiat 124 Abarth, os belíssimos Lancia Stratos, os Fiat 131 Abarth, os Audi Quattro e até o Opel Ascona, que em Portugal, antes do 25 de Abril, se chamava Opel 1904 SR por causa da moral e dos bons costumes. Isto que não saia daqui, mas os que vinham a seguir a estes andavam menos do que nós...
Nós íamos no Vauxhall Viva GT, verde e cinza, com que eu tinha visto o Fredinho correr a Rampa da Penha, uns anos antes. O carro, preparado pelo Valdemar "Mecânico", ou "Paredes", ainda mantinha as barras de protecção e os assentos e volante de competição. Era de uma incomodidade dolorosa, porque andávamos sempre nas horas, e de lado, mas extremamente seguro. Diziam ao Fredinho que ele conduzia muito bem. Ele respondia: "Toda a gente conduz bem até bater. Eu também".
O Rali em Fafe era a Lagoa e era um mundo. Só anos depois é que apareceram as outras classificativas, creio que "inventadas" pelo próprio Fredinho, que as terá sugerido e mostrado aos organizadores da prova. Soube-se ontem que o Rali vai regressar a Fafe, a casa, no próximo ano, embora apenas para uma sessão de espectáculo no troço Fafe/Lameirinha. E eu lembrei-me do Fredinho.

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Novembro de 2011. E o Rali tornou mesmo a casa...

Redenho e honestidade
Uma vez não são vezes: debrucemo-nos então sobre a problemática do redenho. O redenho que - há que admiti-lo sem tibiezas - não é ingrediente indispensável na confecção de uns rojões honestos e com outros matadores, mas no entanto, se marcar presença, confere ao prato um não sei quê que por acaso sei e que tem a ver com o seu aspecto inusitado, com o sabor rústico mas colaborante (dando-se-lhe as voltas certas) e sobretudo com o crocante da textura.
Que se segue, precisei de fazer uma rojoada para uma gente que andava aí com desejos e fui ao talho. Escolhi a carne, da febra e da barriga, o sangue e as tripas enfarinhadas. Quando pedi o fígado de porco, que na verdade até era para ajeitar uma entrada de iscas de cebolada, o talhante, sem que eu dissesse mais nada, avisa-me "Olhe que não temos redenho". E depois, olhando para um lado e para o outro, chegando-se à frente do balcão à procura do meu ouvido e da minha cumplicidade para revelar-me o quarto segredo de Fátima, diz-me, num sussurro: "Quer-se dizer, haver há, mas é congelado". E, congelado, realmente "Não é a mesma coisa", concordámos eu e ele em coro, como se estivéssemos ensaiados.
Repito: o redenho não é indispensável. Mas a gentileza e a honestidade sim. Sobretudo nestes tempos de desrespeito pelos valores e de aviltamento das pessoas, tempos portugueses de antagonismos sociais, de pobreza imposta e de azedume generalizado. Soube do redenho e senti a Terra tremer debaixo dos meus pés. Algo mexeu com o equilíbrio estabelecido do Globo. Continuo a acreditar que anda meio mundo a enganar o outro meio, mas naquele momento, à frente dos meus olhos, um homem passou para o lado bom, que eu bem vi.
As coisas não são tão simples assim, é o que estão a pensar? São, são. E Dalila...

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Novembro de 2011.