sábado, 26 de agosto de 2017

Bolinhos de bacalhau no Tarrenego! 7

Foto Hernâni Von Doellinger

Fredinho Bastos
Eu ia ver o Rali com o Fredinho Bastos. O Rali era um acontecimento emocionante por que esperávamos um ano inteiro e que se dividia em três partes, como jogo e meio de futebol: a viagem até à Lagoa, sempre em rali a partir de Medelo, a passagem do rali propriamente dito, que para nós os dois acabava logo após o sétimo ou oitavo carro, e a merenda que se seguia, nem que chovessem canivetes. Eu, por mim, ficava a ver o resto dos concorrentes até ao fim, mas o Fredinho fazia questão de me ensinar a relatividade das coisas e a prioridade de umas sobre outras. "O rali já acabou, isto agora não é nada. Vamos mas é comer", dizia todos os anos, sem querer saber sequer a minha opinião. E lá íamos atacar o farnel, preparado com todo o carinho pela sua mulher - uma Senhora a quem devo muito mais do que apenas bolinhos de bacalhau e panados, aliás excelentes.
Fazíamos o caminho de regresso até ao carro pela estrada do troço de competição, encostando à berma quando se aproximava o roncar de mais um motor, mas (o Fredinho tinha razão) aquilo era só bazófia, muito roncar e pouco motor. Dava tempo para tudo. Até para cumprimentar pilotos e penduras da segunda metade da tabela, que estavam no largo da famosa Igreja de Nossa Senhora das Neves ainda à espera da ordem de saída. O Fredinho conhecia aquela malta toda. Ele, Alfredo Bastos, também tinha sido corredor de ralis.
Portanto sabia que, depois de Jean-Luc Thérier, Rafaello Pinto, Markku Alen, Hannu Mikkola (com Jean Todt, o actual presidente da FIA, como navegador), Ove Andersson, Sandro Munari, Bjorn Waldegaard, Jean Pierre Nicolas, Walter Röhrl ou Michèlle Mouton, pouco mais havia que realmente interessasse ver. As bombas já tinham passado: os Alpine Renault, os Fiat 124 Abarth, os belíssimos Lancia Stratos, os Fiat 131 Abarth, os Audi Quattro e até o Opel Ascona, que em Portugal, antes do 25 de Abril, se chamava Opel 1904 SR por causa da moral e dos bons costumes. Isto que não saia daqui, mas os que vinham a seguir a estes andavam menos do que nós...
Nós íamos no Vauxhall Viva GT, verde e cinza, com que eu tinha visto o Fredinho correr a Rampa da Penha, uns anos antes. O carro, preparado pelo Valdemar "Mecânico", ou "Paredes", ainda mantinha as barras de protecção e os assentos e volante de competição. Era de uma incomodidade dolorosa, porque andávamos sempre nas horas, e de lado, mas extremamente seguro. Diziam ao Fredinho que ele conduzia muito bem. Ele respondia: "Toda a gente conduz bem até bater. Eu também".
O Rali em Fafe era a Lagoa e era um mundo. Só anos depois é que apareceram as outras classificativas, creio que "inventadas" pelo próprio Fredinho, que as terá sugerido e mostrado aos organizadores da prova. Soube-se ontem que o Rali vai regressar a Fafe, a casa, no próximo ano, embora apenas para uma sessão de espectáculo no troço Fafe/Lameirinha. E eu lembrei-me do Fredinho.

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Novembro de 2011. E o Rali tornou mesmo a casa...

Redenho e honestidade
Uma vez não são vezes: debrucemo-nos então sobre a problemática do redenho. O redenho que - há que admiti-lo sem tibiezas - não é ingrediente indispensável na confecção de uns rojões honestos e com outros matadores, mas no entanto, se marcar presença, confere ao prato um não sei quê que por acaso sei e que tem a ver com o seu aspecto inusitado, com o sabor rústico mas colaborante (dando-se-lhe as voltas certas) e sobretudo com o crocante da textura.
Que se segue, precisei de fazer uma rojoada para uma gente que andava aí com desejos e fui ao talho. Escolhi a carne, da febra e da barriga, o sangue e as tripas enfarinhadas. Quando pedi o fígado de porco, que na verdade até era para ajeitar uma entrada de iscas de cebolada, o talhante, sem que eu dissesse mais nada, avisa-me "Olhe que não temos redenho". E depois, olhando para um lado e para o outro, chegando-se à frente do balcão à procura do meu ouvido e da minha cumplicidade para revelar-me o quarto segredo de Fátima, diz-me, num sussurro: "Quer-se dizer, haver há, mas é congelado". E, congelado, realmente "Não é a mesma coisa", concordámos eu e ele em coro, como se estivéssemos ensaiados.
Repito: o redenho não é indispensável. Mas a gentileza e a honestidade sim. Sobretudo nestes tempos de desrespeito pelos valores e de aviltamento das pessoas, tempos portugueses de antagonismos sociais, de pobreza imposta e de azedume generalizado. Soube do redenho e senti a Terra tremer debaixo dos meus pés. Algo mexeu com o equilíbrio estabelecido do Globo. Continuo a acreditar que anda meio mundo a enganar o outro meio, mas naquele momento, à frente dos meus olhos, um homem passou para o lado bom, que eu bem vi.
As coisas não são tão simples assim, é o que estão a pensar? São, são. E Dalila...

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Novembro de 2011.

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