segunda-feira, 12 de março de 2018

Raul Brandão 5

Mora aqui a D. Hermengarda e a D. Penarícia - mania! mania! mania! - hoje, amanhã, sempre - e a morte joga com a regularidade mecânica de um pêndulo. Toda esta gente usa a vida como quem usa uma ninharia. Aí vem a Adelina... A Timótea se tivesse de envenenar a vila, envenenava-a às pinguinhas. Há os que se gastam como quem gasta uma pedra sobre outra pedra. O Félix procurador não avança palavra sem dobrar a língua, e conserva no escritório, em rimas de papel cobertas de pó, a história da ganância, da vida e da morte de várias gerações. O severo Elias deixa morrer a mãe à fome e todos os anos dá contos de réis aos asilos. Regula a consciência como quem dá corda a um relógio. Dívidas são dívidas. Tem regras fixas. Para não ver o céu dobra-se sobre livros exatos: de um lado Deve, do outro Haver. O drama do Anacleto é um drama respeitável, um drama por partidas dobradas, na máxima ordem e no máximo escrúpulo. Cabem aqui dentro as velhas cismáticas, atrás de interesses, de paixões ou de simples ninharias, dissolvendo-se no éter, e logo substituídas por outras velhas, com as mesmas ou outras plumas nos penantes, com os mesmos ou outros ridículos, fedorentas e maníacas; os homens a quem se foram apegando pela vida fora dedadas de mentira, prontos para a cova - e o Gabiru e o seu sonho. Cabe aqui o céu e as lambisgóias com as suas mesuras, a morte e a bisca-de-três. E cabe aqui também uma velha criada, que se não tira diante dos meus olhos. Obsidia-me. Carrega. Obedece.
Serve as outras velhas todas. A Joana é uma velha estúpida.

 
"Húmus", Raul Brandão

(Raul Brandão nasceu no dia 12 de Março de 1867. Morreu em 1930.)

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